Vida e Literatura em Jose Geraldo Vieira
A ficcao do escritor brasileiro Jose Geraldo Vieira produziu amiude uma perpendicular com a propria vida do ficcionista
A ficção do escritor brasileiro José Geraldo Vieira produziu amiúde uma perpendicular com a própria vida do ficcionista. Em vários de seus romances ele pôs episódios que reproduziam, de alguma maneira, fatos que lhe tinham acontecido. O elemento autobiográfico, cruzando por universos que conhecia bem, facilitava-lhe aprofundar a investigação ficcional. Carta a minha filha em prantos (1946) não tem a máscara da ficção; vai direto à própria vida de José Geraldo Vieira: em 1943, vivendo e trabalhando em Marília, São Paulo, sozinho, longe da família, numa crise de seu casamento, o escritor recebe telegramas desesperados de sua filha Rosa, seguido dum telefonema da família, pedindo que volte urgentemente ao Rio, porque Rosa está em desespero, seu noivo, um aviador da Força Aérea Brasileira, já com casamento marcado, é convocado para a guerra; o livro é uma longa carta que José Geraldo, na impossibilidade do “urgentemente”, escreve à filha, para, propondo alguns desvios evocativos de lembranças familiares, fazê-la relaxar de seu tenso problema.
O livro teve, até hoje, três edições. A original, de 46, pela Brasiliense. Uma em 1964, pela Martins. E recentemente, pela Descaminhos, de São Paulo, com o precioso trabalho de edição e um prefácio elucidativo de André Caramuru Aubert, escritor, editor e sobrinho-neto de José Geraldo. É uma carta, particular certo, e o livro pode ser inserido numa vertente de memórias; no entanto, as aproximações barrocas e inventivas de que se vale José Geraldo Vieira, ligam o texto a quaisquer dos romances do escritor, e o leitor pode escolher ler Carta a minha filha em prantos como uma densa novela epistolar: esqueça-se que José Geraldo fala de si mesmo, por momentos, e transforme-se o que está na página escrita em personagens e novas situações recriadas e transformadas pelo particularíssimo texto do escritor de A mulher que fugiu de Sodoma (1931).
Claro: o leitor de José Geraldo, ao longo da leitura, sempre pode voltar à figura real do escritor. Especialmente nos momentos em que o narrador alude à escrita de romances que de fato foram compostos por José Geraldo. Uma das curiosidades centrais de Carta a minha filha em prantos (algo que em maior ou menor grau pode ser topado em seus romances, mas aqui, pela própria confluência com o real, é exacerbado) é que José Geraldo, ainda usando sua linguagem de raro refinamento, atinge um clima coloquial e familiar às vezes inesperado; ele começa a carta valendo-se abundantemente do pronome “vós” (em desuso nas conversações cotidianas no Brasil) para dirigir-se aos filhos (quando refere mais de um, “fulano e tu” dando em “vós” na concordância), mas lá pelas tantas mistura este tratamento mais cerimonioso ou mesmo arcaico com o habitual “vocês”, assim como o “tu”, também desusado na maior parte do país, e o “você” (hoje bastante difundido até aqui no sul graças às telenovelas) se alternam ao longo desta luminosa epístola paterna, uma verdadeira lição de diálogo entre um pai em longe geografia e uma filha inquieta. No entanto, mesmo cruzando mais frequentemente os caminhos altos do barroquismo, a atmosfera de proximidade familiar é atingida com notável êxito narrativo.
“O cachimbo apagou. Gasto fósforos e fósforos para reacendê-lo. Continuo pensando em ti, minha filha.”
Carta a minha filha em prantos evoca a vida de José Geraldo com seus filhos. No pretexto de consolar a filha, ele busca no passado lembranças que a façam sorrir: desvios do polo central da carta. “Eis o resumo que decerto te fará sorrir, minha filha, tu que hoje estás em prantos.” Há passagens agudas e exigentes: “A impressão que tive na tarde esmaecida, ao som de cigarras, no jardim borrifado de gotículas, as altas aglaias tapando como balouçantes muros a casa e o jardim das duas em esquina —foi, a bem dizer, a daquele quadro inacabado que em 1919 vi no Louvre. É de Leonardo e dos seus discípulos: Santa Ana, a Virgem (com o menino por mamar) e São João.” Mas é uma carta da família, e este tom sempre torna aqui e ali, beijando o solo da casa familiar. “E a collie se encafuava debaixo da mesa, a criançada não a conseguia arrastar, embora mansa a pedir que não só com os olhos.”
José Geraldo debruçou-se à noite para escrever à sua filha sob o impacto da convocação para a guerra do noivo dela. Praticamente este pretexto inicial é ignorado ao longo de todo o texto. A proposta são desvios para amenizar a angústia da filha: os desvios são as lembranças em família. No entanto, no parágrafo final, o assunto que moveu a escrita de José Geraldo vai imperiosamente aparecer.
“Já não te casarás dia 28. Choras? Soluças? Tapas o rosto no ombro de tua mãe? Mas que é isso Rosa? Donde provéns, esqueceste? Tira esse rosto daí, pregue-o, assim, com lágrimas e tudo. Tu também hás que seguir a ‘tradição da casa’. Tuas lágrimas encherão conchas, mas as lágrimas do mundo encheriam o vão do oceano se esvaziado ficasse para lhes dar lugar.
Teu pai.”
De uma certa maneira, a Rosa um pouco recriada, um pouco oculta nas máscaras formais de Carta a minha filha em prantos é outra das grandes personagens femininas de José Geraldo, como a Lúcia de A mulher que fugiu de Sodoma e a Renata de A ladeira da memória (1950). Neste aspecto, retorno um pouco à minha visão (parcial) deste texto como novela ou conto epistolar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br