Schrader Desfaz a Transcendência de Bresson
Gigolô Americano do norte-americano Paul Schrader, é e não é ao mesmo tempo o filme de um crítico de cinema
Gigolô americano (American gigolo; 1980), do norte-americano Paul Schrader, é e não é ao mesmo tempo o filme de um crítico de cinema. Anos antes de rodar este seu filme que encantou a alguns e constrangeu a outros tantos, Schrader observava em seu ensaio clássico O estilo transcendental em filme (1972) a importância de certos atos categóricos (em inglês, no original, “the decisive action") em Pickpocket (1959), uma obra-prima do francês Robert Bresson. Entre estes atos categóricos que fazem Bresson transcender está a famosa sequência final de Pickpocket em que Michel e Jeanne tentam acariciar-se entre as grades da prisão e trocam um diálogo de misteriosa significação; no livro de Schrader uma fotografia da cena final aparece encimada por uma das frases do referido diálogo.
Pois não é que Schrader, no final de Gigolô americano, refaz a seqüência final do filme de Bresson, aproximando entre carícias as personagens de Richard Gere e Lauren Hutton agora através da vidraça duma prisão; é como se Schrader tivesse como motivação para fazer Gigolô americano unicamente a necessidade de exorcizar o fantasma daquela cena final de Pickpocket, é como se Gigolô americano e sua trama tão trivial quanto superficial existissem somente para a comoção plagiada de seu final.
Gigolô americano é o filme de um crítico de cinema, um crítico de cinema bressoniano. Mas tem outras referências para além de Bresson e seu cinema espiritual: há um enquadramento em que aparece um volumoso cartaz de The Warriors (1979), filme do norte-americano Walter Hill profundamente físico; numa sequência em que o protagonista tergiversa com um negro agenciador de homossexuais de programa numa gravura ao fundo vemos o nome do iconoclasta plástico e mundano Andy Warhol, outra peça estética fundamental para a geração de Schrader. O refinamento de Schrader está presente e sua estilística pode ser vazia mas atrai visualmente, pela elegância de cenários e movimentos de câmara: não há rigor, como em Bresson, mas há beleza plástica, embora ela não transcenda como em Bresson. A ausência do crítico de cinema Schrader se dá pela flacidez com que aos poucos o cineasta abdica das discussões espirituais para se deter em superfícies muito americanas ligadas a uma narrativa policial desprovida da profundidade que, sabe-se, era a certa altura o foco de Schrader. É e não é o filme de um crítico de cinema.
Giorgio Armani, famoso estilista de modas que morreu não há muito, compôs o guarda-roupa da personagem de Gere. Giorgio Moroder, autor da partitura do filme, condescendeu com acordes repetitivos e monótonos para a trajetória ufanista do protagonista, analisado com um certo moralismo calvinista por Schrader. Certas andanças de carro de Gere por ruas noturnas evocam o clima perigoso e sombrio de Motorista de táxi (1976), clássico filme norte-americano dirigido por Martin Scorsese e roteirizado por Schrader. Julian e Michelle são os nomes das personagens centrais de Schrader. Michelle é na verdade uma aliteração com a personagem masculina de Michel de Pickpocket (esperteza crítica de Schrader). Se no fim de Pickpocket o encontro metafísico de Michel e Jeanne no cárcere é agudo, a conclusão de Gigolô americano mostrando Julian e Michelle em seu encontro na prisão com ele choramingando como foi difícil encontrá-la e tão tarde resvala para o melodrama comum em Hollywood. Enfim, uma lição de como desfazer a complexa transcendência de Bresson e adaptar elementos de seu universo ao paladar pasteurizado do público de cinema, como buscar o espetáculo que Bresson tanto rejeitava.
P.S.: Tal como fez Schrader em Gigolô americano, o cineasta português João César Monteiro repôs a sequência final de Pickpocket em seu maravilhoso As bodas de Deus (1999), mas o fez sem concessões, sem pasteurizar, recriando sempre. Que distância!
P.S.: “Em minha coluna de cinemania de 18.07.14, tratando do filme Gigolô americano, dei o estilista Giorgio Armani como falecido. Não sei de onde tirei a notícia, mas ela é falsa. Armani está vivo e completou 80 anos recentemente, como noticiou o jornal francês Le Monde. ‘Figure incontournable de la mode italienne, le créateur, qui a lancé sa marque en 1974, célèbre ses 80 ans, vendredi 11 juillet. L'occasion de revenir en images sur quelques-unes de ses plus belles collections.’ Desculpem os admiradores de Armani e os amantes da verdade: me passei.”
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br