Um Classico Para Sempre

Quarto de despejo sobrevive com rara grandeza no panorama de nossas letras

02/10/2020 14:17 Por Eron Duarte Fagundes
Um Classico Para Sempre

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Audálio Dantas (1929-2018), o jornalista alagoano que descobriu a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) numa favela paulistana e a trouxe para o mundo editorial, anota, na apresentação do livro Quarto de despejo (1960), o clássico “diário de uma favelada” da autora: “A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos.” Audálio ainda aduz um de seus paradoxos críticos: “A fome aparece no texto com uma frequência irritante. Personagem trágica, inarredável.” Audálio ainda refere que fez algumas alterações em alguns casos na pontuação e na grafia de certas palavras porque ali poderiam induzir uma “incompreensão da leitura”. Assim, revela-se que o manuscrito original de Carolina foi mexido por Audálio à revelia dela. Os dados levantados por Audálio em seu prefácio permitem uma constatação: Carolina, negra e pobre, dona de uma criação de um texto das ruas construído de maneira muito original, veio à existência como escritora graças à benevolência do mundo branco e que assim determinava o que seria legível na escrita dela. Ao analista da posteridade, aquele que ama a literatura para além dos mecanismos deterministas de estética, resta a esperança de que um dia se possa ter acesso aos manuscritos de Carolina e desfrutar sua obra com todas as exaustivas repetições, grafias estranhas e pontuações desnorteantes de sua edificação original. Ainda assim, com todos estes senões que levanto a partir da leitura da apresentação de Audálio, Quarto de despejo sobrevive com rara grandeza no panorama de nossas letras e, antes que nada, que bom que Audálio o trouxe à luz, seja lá de que forma ele entendeu mais viável editorialmente.

É um clássico para sempre. Por que assim acontece? Carolina escreveu seu diário no coração da favela. É sua realidade, sim, com seus alcances e limites, mas uma realidade recriada pela linguagem. Uma linguagem-favela-preta que expõe seus próprios ossos. Carolina, aparentemente, vai minando as regras gramaticais habituais. O plural e o singular dizem a mesma coisa, os pronomes podem estar em vários lugares de acordo com a vontade da autora, reproduzindo o cotidiano da linguagem ou evocando uma forma escrita que Carolina, como todos os que lemos e escrevemos, hauriu nos livros, provavelmente. A sua paixão por escrever alimenta parte de Quarto de despejo: “Quando fico nervosa, não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.” Carolina, posso dizer assim, sou eu também. Ela diz, respondendo a alguém que lhe pergunta o que escreve: “—Todas as lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana.” Por momentos, gostaria de saber escrever como Carolina, saber o momento certo de infringir o plural: não saberia, acabaria fazendo no momento errado, por isso considero que todo corte na obra de Carolina, feito por outro, por mais bem intencionado que possa ser, é uma violência estética para o livro. Os manuscritos de Carolina deveriam ser tombados: como os de Rimbaud que chegaram a ser publicados na França.

Apesar de circunscrita ao universo de fome e dificuldade da favela, a visão de mundo de Carolina é acurada. Assim como acontecia com a inglesa Jane Austen, cujo provincianismo britânico não lhe impediu o alto voo literário. Movida também por preconceitos (implicâncias ou impricâncias) para com ciganos e prostitutas em torno de sua favela, Carolina faz de seu livro um autêntico retrato antropológico da fome brasileira. “A fome também é professora”, escreve Carolina. Mas Carolina, escritora, tem outras fomes junto com esta fome cruel. “Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” A luta, digamos, no entanto continua: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual — a fome.” Carolina atravessa suas noites: “Eu não vi andar a noite. A fusão das luzes desviam-me do roteiro.”

Carolina começa seu diário em 15 de julho de 1955, com o aniversário de sua filha. Vai concluí-lo no primeiro dia de janeiro de 1960, anotando: “Levantei as 5 horas e fui carregar agua.” Uma frase reiterativa de seu diário: “Saí e fui catar papel.” Mas determinado dia confessa: “Eu cato papel, mas não gosto. Então penso. Faz de conta que eu estou sonhando.” O resultado de sua experiência de vida é um relato ao vivo em que também temos uns instantâneos da sociedade brasileira em determinada época. Em todos os seus pontos, Quarto de despejo afigura-se um clássico para sempre.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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