Crime de Interior
Delicioso em todos os sentidos, Chapadão do Bugre é um dos romances básicos de nossa literatura
Mário Palmério é um escritor do fundo de Minas Gerais. Ou das minas gerais. Como João Guimarães Rosa (polêmico por suas aventuras de linguagem) ou Autran Dourado; são três autores diferentes entre si, mas cuja veia popular-barroca contrasta com a urbanidade despojada de outro ficcionista mineiro, Cyro dos Anjos. Chapadão do bugre (1965) é um de seus dois romances; publicado nove anos depois de Vila dos confins (1956), uma obra-prima que capta a modorra dos fins de mundo do sertão numa linguagem única e cuja cronometria sintática não desmancha a naturalidade de suas origens; já com o domínio maduro dos termos linguísticos que lhe interessam, em Chapadão do bugre as questões da narrativa literária são mais agudamente trabalhadas em sua dinâmica. Para tanto, Palmério unifica os tentáculos de observações das vidas sertanejas numa história mais concentrada; em Vila dos confins, que nasceu de relatórios da vida no interior que Palmério via, a narrativa se dispersava e se distendia, apesar da constante captação duma atmosfera que preenchia os possíveis vazios desta dispersão.
Em Chapadão do bugre é o crime passional de José de Arimatéia, o protagonista, que constrói o fio de ligação do romance. José de Arimatéia está noivo de Maria do Carmo, mas um belo dia, voltando antecipadamente de suas andanças, a surpreende com outro; mata o amante, mas a vida lhe escapa. A fuga de José de Arimatéia, perseguido pela polícia, preenche uma boa parte da ação romanesca. O final trágico deste herói ignoto do sertão é descrito por Palmério misturando-se ao apagar-se da natureza: “sumiu-se a barra da manhã”.
Em Chapadão do bugre o crime amoroso é o mesmo de Angústia (1936), de Graciliano Ramos. Assim como o Julião Tavares de Graciliano é morto por Luís da Silva, o corno feroz, o amantezinho de Maria do Carmo é assassinado pelo violento peso moral de José de Arimatéia em Chapadão do bugre. Crimes necessários de limpeza de honra, como se dizia antanho (um olhar-antanho). Em Graciliano há abismos psicológicos neste crime. Em Palmério a circunferência dum idioma regional reinventado faz a festa literária.
Delicioso em todos os sentidos, Chapadão do bugre é um dos romances básicos de nossa literatura.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br