A Simbologia Despojada e Ferina de Woody Allen

Zelig (1983) é, provavelmente, a realização mais criativa, mais incontornável de Woody Allen

16/03/2017 23:43 Por Eron Duarte Fagundes
A Simbologia Despojada e Ferina de Woody Allen

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O ponto alto da extensa filmografia do norte-americano Woody Allen está em meados dos anos 80 do século passado. São, particularmente, dois filmes que, sem perder suas características de judeu nova-iorquino encucado intelectualmente, se alçam para pontos de diferenças narrativas mais excêntricas, mais originais que certos pastiches metafísicos à europeia que ele veio fazendo pela vida afora. Zelig (1983) é, provavelmente, sua realização mais criativa, mais incontornável; o outro filme de que falo é A rosa púrpura do Cairo (1985); este sucedeu àquele na filmografia de Allen e ambos parecem estabelecer o centro dos postulados estéticos do realizador.

Zelig mimetiza um documentário: faz da técnica documental uma história de ficção, embaralhando realidade (falsa) e imaginação (construída), aproximando tudo por uma simbologia tão despojada quanto ferina. Por que teria Allen buscado as armas documentais para sua história de fantasia? Para melhor estabelecer sua visão sobre a sociedade daqueles anos, a sociedade do ajustamento, do conformismo, dos padrões. Como se vê, as coisas não mudaram nada. Allen se falsifica para expor-se. Como sua personagem, Leonard Zelig, vivida pelo próprio realizador, uma verdadeira aparição fantasmal entre as imagens: se o diretor de ficção se faz documentarista, Zelig, a criatura, para se adaptar, simula sempre ser igual à pessoa com que contracena, um igual do meio: obeso ao deparar com um obeso, um chinês diante dum chinês, um psicanalista diante dum psicanalista e, suma das sumas, um nazista entre os nazistas. Mas Zelig, por estes seus disfarces de adaptação, é também uma força subversiva e perigosa: o nazismo, desconfiado dele, o caça, a ele e à sua companheira e psicanalista.

Talvez a parte nevrálgica de Zelig sejam estas sequências de Leonard Zelig perdido entre reconstituições nazistas. Talvez o centro desta simbologia-recado do filme de Allen esteja por aí, o indivíduo deixou de ser ele mesmo para se tornar o outro (conformismo) mas isto gerou um movimento subterrâneo perigoso que pode explodir em violência (como no nazismo, como nestes anos iniciais do século XXI).

Talvez, do ponto de vista da construção íntima desta personagem impagável, duas cenas entre a doutora que a trata e Zelig estejam entre as mais espantosamente geniais do cinema de Allen. Há uma cena em que a médica questiona Zelig sobre o que ele acha que ele está fazendo ali. Ele lhe diz que é para discutir psiquiatria com ela. Ela tenta dizer-lhe que ele é paciente, ele diz que ela deve estar brincando, ele inquieta-se um pouco mas não a leva a sério. Numa cena mais adiante, ela tem a ideia de travestir-se da personalidade dele, usa inclusive o trauma dele de não ter lido Moby Dick e ter de discutir o livro com eruditos, afirma a ele que se faz passar por médica mas não é médica, ele se inquieta bastante na cadeira e confessa finalmente a ela que não é médico. Esta transposição de personalidades eleva o cinema de Allen a um patamar digno dos grandes artistas ocidentais, um fragmento de Sigmund Freud.

Zelig pinta, como se fosse verdade, o retrato dum homem adaptável que teria de fato existido. A rosa púrpura do Cairo mimetiza, com sua história, o comportamento do espectador de cinema às avessas: se, pela emoção, somos nós que entramos na tela para estar ao lado da personagem, no filme de Allen é a personagem que sai da tela, vem para a sala de cinema e depois para as ruas para divertir a opaca vida do espectador de ficção. Símbolos expostos por Allen com extrema felicidade nestas duas obras-primas. E dos quais nos lembramos sempre tão fortemente quanto não será possível relativamente a qualquer outro filme do cineasta.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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