O Fellini Brasileiro
Uma história e tanto, esquecida pelo tempo!
O Fellini Brasileiro
Pouca gente deve saber desta história, eu mesmo tinha esquecido. Mas outro dia, resolvi ler de novo o livro autobiográfico do diretor Paul Mazursky, chamado Show me the Magic. Paul (1930-2014), é um realizador famoso por filmes de sucesso como Uma Mulher Descasada, Harry e seu amigo Tonto, Bob, Carol, Ted e Alice, Luar sobre Parador (rodado no Brasil em 88 e estrelado por Sonia Braga, que ele elogia muito no livro). Eu o entrevistei num Festival de Veneza , onde ele apresentou um de seus trabalhos menos notáveis, Fiel mas nem Tanto, 96, com Cher e Ryan O´Neal. Era uma figura muito simpática, acessível, apaixonado pelo trabalho. Eu tinha esquecido de prestar atenção no livro dele ate reencontrar um capítulo muito interessante e que acho que nunca foi discutido no Brasil. Acontece que Mazursky era um grande amigo de Federico Fellini (1920-93), a quem conheceu visitando a Itália, num relacionamento que durou a vida inteira e o convenceu a participar num filme dele, por sinal muito raro, mal passou no Brasil e foi um enorme fracasso de bilheteria e crítica. Fellini faz uma cena onde esta montando um filme e encontra o protagonista Donald Sutherland (o filme se chama Alex in Wonderland/Um Doido Genial, 70) que é um diretor de cinema meio maluco- e autobiográfico que aliás encontra também Jeanne Moreau que canta para ele! Cá entre nós, não é bem sucedido e hoje vale apenas por pura nostalgia. Fellini naquela época já tinha feito sua obra-prima Oito e Meio (63), que é homenageada na história.
Mas o que eu acho interessante é o fato que Fellini e Mazursky se comunicaram a vida inteira por cartas (uma secretária traduzia a maior parte para ele, mas ocasionalmente arriscava o inglês!), mesmo quando Fellini ganhou o Oscar especial por sua carreira. O que nos interessa e vou traduzir, é uma carta da época em que Mazursky estava no Brasil rodando o filme Luar sobre Parador. Eis o que Fellini escreveu para ele:
“Roma, 19 de Outubro 1987
Querido Paul.
Obrigado por uma mensagem afetuosa, mesmo que eu esteja um pouco surpreso por seu entusiasmo pelas mulheres do Rio. O que está querendo dizer? Que, na sua idade, não sabia que elas eram assim? O que andou fazendo este tempo todo? Como pôde viver desse jeito? Eu tinha sete anos, estava numa escola interna em Rimini e a Madre Superiora era brasileira! Que emoções, Paul! Que ‘BUNDA’! (literal no texto!). Depois disso, todas as empregadas domésticas que acompanharam a minha infância e adolescência, até chegar na Universidade foram escolhidas pelo meu pai, que fez todas elas virem do Brasil! Que estranho que nunca conversamos sobre isso antes. E Norma, Fiammetta, de onde você acha que elas vieram? São Paulo, Rio, “Bundoya”, Brasília. Marcello (referência a Mastroianni) também é muito envolvido com o Brasil. É por isso que com frequência eu chamo ele para os meus filmes.
Preciso interromper esta carta e correr para o Grand Hotel, onde 24 dançarinas da Companhia do OBA-OBA estão impacientemente aguardando por mim. Bom, estou feliz por você, antes tarde do que nunca (mas talvez seja um pouquinho tarde demais).
Eu te abraço, Paulino, “e viva la bunda!’. Do seu Federicão.”
Traduzido por Rubens Ewald Filho
Sobre o Colunista:
Rubens Ewald Filho
Rubens Ewald Filho é jornalista formado pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), além de ser o mais conhecido e um dos mais respeitados críticos de cinema brasileiro. Trabalhou nos maiores veículos comunicação do país, entre eles Rede Globo, SBT, Rede Record, TV Cultura, revista Veja e Folha de São Paulo, além de HBO, Telecine e TNT, onde comenta as entregas do Oscar (que comenta desde a década de 1980). Seus guias impressos anuais são tidos como a melhor referência em língua portuguesa sobre a sétima arte. Rubens já assistiu a mais de 30 mil filmes entre longas e curta-metragens e é sempre requisitado para falar dos indicados na época da premiação do Oscar. Ele conta ser um dos maiores fãs da atriz Debbie Reynolds, tendo uma coleção particular dos filmes em que ela participou. Fez participações em filmes brasileiros como ator e escreveu diversos roteiros para minisséries, incluindo as duas adaptações de Éramos Seis de Maria José Dupré. Ainda criança, começou a escrever em um caderno os filmes que via. Ali, colocava, além do título, nomes dos atores, diretor, diretor de fotografia, roteirista e outras informações. Rubens considera seu trabalho mais importante o Dicionário de Cineastas, editado pela primeira vez em 1977 e agora revisado e atualizado, continuando a ser o único de seu gênero no Brasil.