Um Pavao na Cidade de Fellini
Amarcord trata das recordacoes de infancia de Fellini
Quase ao final de Amarcord (1973), um dos filmes mais amados rodados pelo italiano Federico Fellini, um pavão pousa na praça nevada da cidade. A câmara de Fellini contempla maravilhada as antenas coloridas do animal; este estado de maravilhar-se é perfeitamente comunicado ao espectador. Fellini é dono de um espetáculo particular, é o dono do espetáculo que é seu filme: o povo simples e bruto da Itália topa nas mãos de Fellini um universo encantador, diferente de tudo o que houve no cinema ao longo dos anos –um estágio avançado e delirante da imagem.
Amarcord é uma das obras-primas mais unânimes do cineasta. Mesmo aqueles observadores que têm dificuldade em aceitar as excentricidades de A doce vida (1960) ou Casanova de Fellini (1976) acabam sendo conquistados por Amarcord. É que, apesar do desequilíbrio de imagem e narrativa que ele propõe como em todos os filmes de Fellini a partir de A doce vida, Amarcord recupera algo da veracidade de tipos e situações que havia em suas realizações até As noites de Cabiria (1957); Amarcord trata das recordações de infância de Fellini, remetendo à mesma Rimini visitada por Os boas vidas (1953); é bem verdade que certos tipos esquisitos e algumas situações vividas por um grupo de jovens vadios se aproximam num e noutro filme, mas uma densa cortina de neve separa o senso do real de Os boas vidas da liberdade mágica de Amarcord. O barroquismo de Amarcord é mais enxuto e menos brutal que o de Casanova de Fellini ou A cidade das mulheres (1980), daí por que sua assimilação pelos observadores menos fellinianos é natural, corre escorreita.
Fellini é um grande filho da mãe, da mãe Itália, mais do que todos os grandes realizadores peninsulares. Apesar do prestígio adquirido junto aos meios intelectuais e de se atirar a linguagens mais sofisticadas como em Oito e meio (1962) e Julieta dos espíritos (1965), Fellini nunca perdeu a raiz popular, comunicativa de seu cinema; ele é o oposto do sueco Ingmar Bergman, pois o cinema de Fellini é luz e sol enquanto o de Bergman mergulha nas trevas; a origem cinematográfica de Fellini não é intelectual como a do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, mas é uma origem popular, muitas vezes popularesca (o tio louco que sobe a uma árvore no centro do campo e grita para a família que quer uma mulher, as figuras estranhas de professores escolares), que Fellini, com seu gênio criativo, depura, tornando estas origens semivisíveis.
O pavão pousa na cidade de Fellini. A música de Nino Rota convida a um baile entre personagens e espectadores, que finalmente se confundem. Fellini articula a câmara como o maestro de seu filme Ensaio de orquestra (1979). Amarcord é filme para ver, ouvir e dançar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br