A Politica e a Arte: O Sistema de Toca

Um dos filmes que centralizaram as discussoes cinematograficas nos anos 80 foi Mephisto

25/03/2021 20:50 Por Eron Duarte Fagundes
A Politica e a Arte: O Sistema de Toca

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Um dos filmes que centralizaram as discussões cinematográficas nos anos 80 foi Mephisto (Mephisto; 1981), dirigido pelo húngaro István Szabó e que contou com capitais alemães, húngaros e austríacos. A base é um livro de Klaus Mann de 1936; Klaus é filho do escritor Thomas Mann e seu trabalho se inspira na carreira do ator Gustaf Gründgens, um indivíduo das relações de Klaus; Szabó aproveitou a história de Mann e sua visão das relações entre a política e arte caiu com extrema precisão nas cores difusas destas relações no coração daquela década que se iniciava.

O ator teatral alemão Hendrik Hoefgen só quer fazer bem aquilo para o qual nasceu: representar. O regime nazista fora eleito para governar a Alemanha e suas ideias começavam a tomar conta da sociedade. É possível representar sem ter relações com o poder? Existe isto de estética pura? A arte pode estar em sua toca, respeitando a toca da política? São separáveis a arte e a política? Hoefgn acredita que sim. Fazendo bem seu trabalho, o poder não interfere, nem em sua arte, acredita ele. Hoefgen tem alguns problemas para o novo regime: fez manifestações bolchevistas no passado; sua ex-esposa , Barbara Bruckner, assim que o nazismo assumiu, se retirou do país e fala mal do regime no exterior; sua amante Juliette Martens é negra. O primeiro-ministro alemão, que quer cooptar Hoefgen porque o ator em prestígio, o questiona: ele ainda se corresponde com sua ex-esposa? Ele deveria afastar-se da mulher negra com quem se relaciona, a nobreza racial do nazismo sente-se incomodada.

Mephisto adota, em sua primeira linha narrativa, um olhar objetivo para as coisas. A trama do filme mostra, com grande transparência, a forma como um artista é comprado por um regime totalitário; e observa como este artista não o percebe com o andar dos dias, nem a interferência do nazismo em sua vida privada (sua amante negra é exportada para a França), nem o que sua existência como artista deve a suas ligações invisíveis para ele com o poder totalitário. Tarde demais, Hoefgen se vê na teia e provavelmente não tem mais como sair dela: a toca da política se mistura com a toca da arte, apesar do esforço do artista para permanecer, sobranceiro, à distância. Mephisto parecia dizer, na alma incolor e opaca dos 80 (e aqui no Brasil vivíamos uma abertura política ensaiada, no estertor da ditadura militar, cheia de concessões, pela sociedade e, dentro dela, os artistas), que não temos como separar a arte da política: cedo ou tarde elas se chocam, por alguma maneira. Mas esta sensação de objetividade de intenções numa narrativa bastante clara em seus propósitos finais cede, ao correr dos planos, um forte espaço para alegorias e máscaras: são as maquiagens e rostos que desmascaram a objetividade, criando signos cinematográficos mais complexos que o que parece à primeira vista.

No plano que fecha o filme, logo após uma representação exitosa de Hamlet (o discurso do ator sobre Shakespeare e a peça, pouco antes da apresentação, é quase inconscientemente provocativo), o ator está num palco que é uma espécie de arena, aonde foi levado pelos generais nazistas: um facho de luz o acompanha, persistente; Szabó alterna alguns planos gerais da perseguição do facho de luz ao ator que tenta deslocar-se fugindo com certos primeiros planos do rosto da personagem apavorada; suas últimas palavras no corpo narrativo são: “Eu sou apenas um ator; que querem eles de mim?” Hoefgen se exibe teatralmente: é sua máscara para a vida. Assim como a arte é sempre uma máscara. Ao ter a felicidade de penetrar no interior de suas imagens cinematográficas, Szabó sai um pouco de sua objetividade primeira e atinge uma inusitada complexidade de intenções. A discussão amplia-se: como se estivéssemos finalmente saindo da toca.

O intérprete austríaco Klaus Maria Brandauer como Hoefgen tem sua caracterização definitiva no cinema; a polonesa Krystyna Janda (conhecida então por sua interpretação em O homem de mármore, 1977, de Andrzej Wajda, onde vive uma jornalista cooptada por um sistema assim como Hoefgen no filme de Szabó) interpreta a ex-esposa da personagem-central, com seu desembaraço mas longe de sua atuação no filme de Wajda; a atriz negra alemã Karin Boyd (que também se transformou numa diretora de teatro) brilha mais que Janda.

Olhando para as décadas que vieram, e até para estes anos 20 do século XXI que agora dão seus passos iniciais, pode-se dizer que Mephisto, no holofote final que os nazistas jogam sobre seu ator-personagem, ilumina muitas coisas: inclusive que estes anos 20 já estavam sendo semeados naqueles 80 do século passado. Os tempos históricos nascem uns dos outros, como os tempos das vidas dos indivíduos, por mais que haja mudanças. Como a fruta dentro da casca. O resto em Machado de Assis.

 

(Eron Duarte Fagundes — eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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