O Gaucho Classico
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O argentino José Hernández fez na poesia o que seu patrício Ricardo Güiraldes fez em prosa. Martín Fierro (1872) é um poema épico que plasma, em redondilhas definitivas, o que o romance Dom Segundo Sombra (1926) faria depois na ficção: a vida e os costumes do gaúcho, aquele gaúcho clássico da campanha que, cruzando os espaços físicos desolados e largos do sul do Brasil e da Argentina, na verdade pisou, para todos os que vivemos no sul, um espaço e um tempo míticos da sociedade e da arte por aqui.
Originalmente publicado em duas partes, O gaúcho Martín Fierro e A volta de Martín Fierro, o livro de Hernández é um pioneiro retrato, quase uma plasticidade em palavras, deste nosso ancestral que, de maneira forte, permaneceu em nosso jeito de sempre, por mais que certa urbanidade nos sofistique; encontramos no texto de Hernández, agora traduzido por um sul-riograndense fronteiriço, Colmar Duarte, o linguajar e os costumes que ouvimos e de que sabemos, quase todos, desde a infância: nesta edição bilíngue da editora Movimento, é um pouco como se Hernández, pela pena igualmente mágica de Colmar, ressuscitasse na língua portuguesa —Colmar não transcopia muitas vezes na tradução, usou constantemente de criatividade que enriquece o vocabulário e o engenho sintático desta campanha da qual, bem ou mal, de uma ou de outra forma, todos viemos, ainda que relutemos em “vestir a pilcha”.
Para os que enxergamos a literatura ao sul do Brasil, Hernández é também precursor do contista pelotense João Simões Lopes Neto. Sabe-se que o romântico José de Alencar fez seu O gaúcho (1870), que foi desancado, por inveracidade, num ensaio de Augusto Meyer; não sei se Alencar deitou os olhos em alguma literatura gauchesca platina, mas ele certamente foi um cearense instalado na corte que pode ser visto mais como um ficcionista de salão, incapaz de documentar a campanha, como Hernández, Simões Lopes ou ainda Cyro Martins, que estiveram lá.
Nos versos heroicos de Martín Fierro o leitor topa pontos altos da língua e da capacidade de observação do escritor. Narrando em primeira pessoa, o gaúcho que se mostra é o ser machista, arcaico, sexista e racista (num determinado canto, o gaúcho se engalfinha com um negro e sua fúria contra o oponente é clara: “—Os brancos, os criou Deus, / os mulatos, fez São Pedro,/ os negros os fez o diabo,/ para tição do inferno.” Diz-se, e sabe-se, até hoje que o Rio Grande do Sul é o estado mais racista do Brasil; e o racismo dos argentinos, tão sobranceiros sempre, é clássico. O episódio levantado por Hernández ilustra esta nossa origem. Ao usar a primeira pessoa, mandando para o subterrâneo uma narrativa onisciente que todavia está ali, estaria Hernández incorporando a seu texto o racismo gaúcho? É bem possível.
Os possíveis defeitos do homem Hernández não estorvam sua apreciação como escritor, aparentemente. Assim como o execrável antissemitismo do francês Louis Ferdinand Céline não impede sua alta escrita.
Martín Fierro foi filmado nos anos 60 pelo mítico realizador argentino Leopoldo Torre Nilsson, num estilo barroco e metafórico segundo as linhas dos Cinemas Novos terceiro-mundistas da época. O texto de Hernández é bastante mais transparente.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br