Literatura e Cinema: Diegues Amortiza Joo Ubaldo
Joo Ubaldo Ribeiro faleceu recentemente aos 73 anos
Pré-escrito: João Ubaldo Ribeiro faleceu recentemente aos 73 anos. Era um dos imortais de Academia Brasileira de Letras. Mais que isto: tinha aquela coisa baiana tão descansada que não se imagina como a morte pode chegar ali. Chegou, como chega para todos. O texto abaixo, ligando um conto de João Ubaldo a um filme de Carlos Diegues extraído do conto, é meu necrológio para o grande ficcionista de Viva o povo brasileiro (1984).
Deus é brasileiro (2002), de Carlos Diegues, parte de um conto do ficcionista João Ubaldo Ribeiro. Trata-se de O santo que não acreditava em Deus, escrito no começo da década de 80 e que esteve na coletânea Já podeis da pátria filhos e outras histórias, de 1991. No final da década de 90, Diegues e João Ubaldo começaram a dar tratos à bola para fazer a adaptação cinematográfica do texto literário; talvez Diegues quisesse submeter seu senso fílmico às possibilidades de captar o universo de palavras do escritor, um dos mais importantes do país. João Ubaldo afastou-se da produção para escrever seu romance Diário do farol (2002). Diegues seguiu avante em seu projeto, metamorfoseando bastante o argumento inicial, mas pretendendo manter a sua essência. O que acima vai escrito é uma colagem das anotações e revelações do crítico José Carlos Avellar em seu livro O chão da palavra, cinema e literatura no Brasil (2007), página 345.
O conto O santo que não acreditava em Deus tem seu início numa ambientação de praia nordestina; o narrador (primeira pessoa) é um pescador e os movimentos iniciais do texto (digo provocativamente, mas o texto é estático, parece tão-somente uma dissertação sobre sua atividade —nada acontece) se referem ao universo dos peixes que a personagem tem topado e passa amorosamente seu conhecimento (empírico) ao leitor. O primeiro parágrafo é uma delícia só, com o verbo solto, sintaxe que se desarruma e rearruma a cada dobra de frases, o estilo de crônicas antigas que Ubaldo faz muito bem (“o qual peixe fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro”); um pouco como se o velho padre Manuel Bernardes, dum dos prosadores excelsos da língua, baixasse como um caboclo nordestino do século XX e fizesse sua moderna parábola sobre Deus, recriando o velho signo de que os cristãos (desde Deus, o maior de todos) são pescadores de almas, mas, como diz o final do conto, “nem toda pesca rende peixes”.
Deus é brasileiro, o filme de Carlos Diegues, não tem a textura densa da linguagem de João Ubaldo; a objetividade humorística de Diegues, obedecendo um figurino cinematográfico um pouco ligado à televisão, vai por outros caminhos, às vezes parece uma adaptação das doçuras sertanejas de José Lins do Rego (longe das asperezas sintáticas, cheias de abruptas rigidezes, de João Ubaldo), como se fosse uma adaptação de Riacho doce (1939), filmado por Fábio Barreto com o título de Bela Donna (1998); é como se Diegues descesse até Fábio, é como se Diegues convertesse o humor verbal enviesado-sertanejo de João Ubaldo em comicidade fácil à televisão. Hermano Penna e seu ator Lima Duarte saíram-se melhor em Sargento Getúlio, filme de 1983, romance de 1971.
Um texto é um texto, um filme é um filme. Diegues quis dar feitio cinematográfico à literatura linguisticamente inventiva de João Ubaldo. Este feitio Diegues obtém e é este feitio que torna Deus é brasileiro até digerível. Com seu senso de cinema Diegues transforma o texto quase imóvel de João Ubaldo em algo movimentado, pronto para paparicar o público de cinema. É claro que Diegues evitou filmar o palavrório inicial do conto sobre peixes: são os aspectos documentais do texto de João Ubaldo. Diegues substitui a dissertação sobre peixes por ligeiros flagrantes numa estação de trem onde a personagem de Wagner Moura fala ao telefone. É uma seqüência de movimentos e leve. Como teria sito o tratamento inicial da adaptação da qual João Ubaldo participou?
João Ubaldo é um escritor fascinante, seu texto deslumbra e agita. Mas o João Ubaldo-homem fala muitas vezes de maneira monótona, como um baiano trivial. (Qual João Ubaldo ajudou Diegues no roteiro inicial? O filme capta o João Ubaldo mais bobo e não o escritor penetrante.) Lembro especialmente dos depoimentos de João Ubaldo no documentário Glauber, o filme —labirinto do Brasil (2003), de Silvio Tendler; seu depoimento sobre o peido de Glauber dentro dum elevador (e acima de tudo Glauber indiciando João Ubaldo como se o escritor tivesse dado o dito peido; olhar, coisa de cineasta) ficou famoso pela indignação que causou entre os familiares do diretor baiano. Sem ofensas (ou depende da interpretação), Deus é brasileiro é um peido do universo literário de João Ubaldo Ribeiro nas mãos do cineasta Carlos Diegues.
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br