Da Igreja do Diabo a Ilha das Flores
A Igreja do Diabo representa no conto o que no romance representou Memorias Postumas de Bras Cubas dentro da ficcao de Machado
Muitos dirão que é uma heresia. Eu direi que tenho mesmo uma parte herege muito forte. E aqui vou tratar também de coisas heréticas: obras de arte que propõem certas heresias. A igreja do diabo é o conto que abre o volume Histórias sem data (1884); é um texto de Machado de Assis não muito referido hoje em dia, mas este comentarista tem especial afeição a esta obra, desde o primeiro contato, ali pelos dezessete anos da idade. Ilha das flores (1989), um filme de curta metragem dirigido por Jorge Furtado, provocou um estupor seguido de êxtase quando foi exibido no Festival de Gramado de 1989 e certamente o cinema de Furtado, apesar de seu bom domínio do senso cinematográfico, nunca mais atingiu esta nervura estética, é o Kane de Furtado, somente que Furtado, não sendo Orson Welles, não se inquieta com este problema “minúsculo”.
A igreja do diabo é um conto de ideias, melhor, é o conto de uma ideia, a ideia (ou o pensamento) é a trama, a narrativa, é a ideia que faz a trama, que dita seu ritmo ou desenvolvimento. Um conto-ensaio. Pouco antes, Machado de Assis publicara o primeiro grande romance de ideias da literatura brasileira: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Este romance conta algumas histórias, certo, com personagens, relações, mas está cheio de desvios para o mundo das ideias, em certos momentos dá a impressão de que tudo o que se passa serve às ideias: só não é um romance de tese graças à agudeza psicológica do romancista. Um capítulo essencial é o capítulo IV, “Uma ideia fixa”: “A minha ideia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa.” Na frase inicial de A igreja do diabo lemos: “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja.” Era a ideia fixa do Diabo, Deus o livre, diria Brás Cubas. E em sua igreja os mandamentos do Diabo seriam opostos aos de Deus: o egoísmo no lugar da caridade, a hipocrisia substituindo a honestidade. Cria assim, o dito sinistro, na natureza humana, na natureza do mal ou o mal é na verdade um bem. Mas a ideia é precedida de uma imagem, como o Diabo explica a Deus, indo ter com o Senhor no céu: “—Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...” A igreja do diabo representa no conto o que no romance representou Memórias póstumas de Brás Cubas dentro da ficção de Machado: desnudar o cinismo do homem à luz do comportamento do homem no Brasil do século XXI. A ideia do Diabo edifica a estrutura literária que é o que mantém de pé um conto como A igreja do Diabo: o narrador vale-se do ritmo diabólico de pensar (ou do pensar) para construir a realidade formal de seu achado, o do narrador machadiano. Sôfrego, açodado, o ente narrativo de A igreja do Diabo vai expondo sua ossatura a cada frase-ideia; até o desfecho em que a própria inversão moral é destampada em seu farisaísmo: “—Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.” É que, na sociedade onde impera a igreja do Diabo, a caridade é proibida, e, à socapa, alguns fiéis a praticam como o fruto proibido. É do que gosta o homem, parece asseverar Machado, desde sua forma: do proibido.
O filme Ilha das flores também parte duma ideia fixa. Uma ideia fixa em torno da natureza do capitalismo. Um letreiro inicial anuncia: “Este não é um filme de ficção.” Após a apresentação dos créditos finais, outro letreiro anuncia: “O resto é verdade”, ou seja, fora a realização, sua técnica, executada pela equipe, o que se relata é verdade. Ilha das flores não é ficção. Não é também documentário. É um filme de ideias, melhor, como o conto A igreja do Diabo, de uma ideia fixa que Jorge Furtado converteu num roteiro cinematográfico. Um pretenso documentário (“não é ficção”) com um roteiro elaboradíssimo, erigido em torno duma ideia fixa. Heresias. Heresia: equilibrar, na cultura brasileira, a literatura de Machado de Assis e o cinema de Jorge Furtado. Com dois lampejos heréticos, o conto A igreja do Diabo e o filme Ilha das flores. No filme de Furtado a voz de Paulo José, determinante do ritmo como a edição de Giba Assis Brasil e o roteiro de Furtado, lá pelas tantas diz sobre uma imagem de Cristo: “Cristo é judeu.” O Diabo desceu do texto de Machado de Assis para pôr aquilo na boca-over de Paulo José? De heresia em heresia, acompanhamos uma teoria do capitalismo a partir da trajetória dum tomate que manipulamos. Furtado, sabemos, partiu de certas coisas que fez o francês Alain Resnais em Meu tio da América (1980). Mas sua aplicação da reflexão científica a uma encenação tem mais proximidades com aquilo que fez o alemão Alexander Kluge num filme como O poder dos sentimentos (1983). Claro: Furtado é mais faceiramente brasileiro, sem as complexidades europeias de Kluge. De certa maneira o mesmo se pode dizer de Machado de Assis, a ironia brejeira de A igreja do Diabo, apesar de sua devastação metafísica e retórica, é ancestral do mesmo sarcasmo fácil com que Ilha das flores desconstrói e reconstrói uma espécie de seriedade estética que não se leva tão a sério no sentido de ausência de prazer, o prazer de ver um filme de forte comunicação feito de elaborados retalhos intelectuais. A heresia suprema —ou a iconoclastia— é esta: Ilha das flores já estava dentro de A igreja do Diabo como a fruta dentro da casca. A ideia como a fotografia inicial e abstrata duma construção de dramaturgia cinematográfica veio a Jorge Furtado de lá, de nossos tempos clássicos de literatura.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br