Cabra Marcado para Morrer
O sopro épico e a historicidade elevam o filme de Eduardo Coutinho muito acima da dimensão documentária
O sopro épico e a historicidade elevam "Cabra marcado para morrer", de Eduardo Coutinho, muito acima da dimensão documentária. Esse grande momento do cinema brasileiro (lançado em 1984) pode ser visto em DVD produzido pelo Instituto Moreira Salles, com faixa comentada pelo cineasta, Eduardo Escorel e Carlos Alberto Mattos; e que inclui dois documentários de 2013 relacionados com o "Cabra": "A família de Elizabeth Teixeira" (65 minutos) e "Sobreviventes da Galileia" (27 minutos). O longa já havia sido restaurado em 2012, com recuperação das inserções em cores e da trilha sonora.
Eduardo Coutinho (1933-2014), que atuou na crítica de filmes e na televisão ("Globo Repórter"), começou no cinema de ficção, mas foram os documentários que lhe garantiram uma posição de relevo na cultura do país. "Edifício Master" (2012) e "Santo Forte" (1999) estão entre os mais expressivos.
"Cabra marcado para morrer" nasceu - inesperadamente - de um projeto de 1962, quando Coutinho foi ao Nordeste com o propósito vago de realizar um documentário sobre a realidade brasileira em 16 milímetros. Em Sapé (Paraíba) registrou um comício de protesto contra o assassinato de Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa local, vítima de integrantes da Polícia Militar que atuaram como o braço longo de interesses contrariados. Participava do comício a viúva do líder, Elizabeth Teixeira, que viria a ser a grande protagonista do "Cabra". E, não por acaso, esta sequência se destacou naquele insatisfatório registro documental - e deu origem ao projeto de um filme sobre Pedro Teixeira segundo normas do cinema realista (ou neo-realista) de ficção. Do documentário de 1962 ao filme de 1964 a inspiração continuaria sendo a do CPC (Centro Popular de Cultura), organismo que acenava com receitas ideológicas "prontas" para transformar a realidade brasileira. Seguindo um dos padrões do neo-realismo italiano, camponeses interpretariam os camponeses de Sapé – Elizabeth, como ela mesma; outro integrante da Liga como Pedro Teixeira etc. O golpe político-militar de 1964 interrompeu tanto o filme quanto o processo reivindicatório que ele tentava retratar (de forma condenada à fatuidade pela estética sectária).
Dezessete anos depois, Coutinho reencontraria Elizabeth Teixeira e os camponeses de Sapé. As novas circunstâncias do país e o confronto dos improvisados intérpretes com suas imagens filmadas do passado deflagraram um fenômeno singular: a nova versão de “Cabra marcado para morrer”, que pouco aproveita do material de 1964, assinala a vitória da realidade sobre dois processos ficcionais – o postiço realismo do CPC e a propaganda repressiva incapaz de desintegrar a sabedoria simples de Dona Elizabeth e de seus companheiros de infortúnio.
Em sua nova investida no terreno de uma complexa realidade, Coutinho teve a grandeza de desprezar qualquer postura de oráculo da História e fraternalmente viver com os personagens a torrente dos fatos. Implicitamente ele reconhece a impotência da estética do CPC e, como um repórter iluminado, passa a trabalhar em cima do equilíbrio entre suas intervenções e o esplendor de veracidade das reações dos personagens.
É a singularidade detectada por outro admirável documentarista, Vladimir Carvalho: “O filme provoca a sua matéria, ao contrário do que normalmente ocorre no cinema, que trabalha em cima de matéria vencida no tempo, reelaborada como espetáculo”.
Nunca houve um filme como "Cabra marcado para morrer".
Sobre o Colunista:
Ely Azeredo
Ely Azeredo é jornalista, crítico e professor de cinema. Escreve no caderno "RioShow" (O Globo) e no blog de cultura cinematográfica cujo acesso é: elyazeredo.com. Livros publicados: "Infinito Cinema", "Olhar Crítico: 50 Anos de Cinema Brasileiro" e "Jorge Ileli - O Suspense de Viver". Participou de edições sobre Hitchcock, Bergman e outros cineastas. Integrou o júri do Festival de Berlim. Criou o primeiro Cinema de Arte (RJ) e a revista "Filme Cultura".