Ainda Somos os Mesmos
Elis, filme dirigido por Hugo Prata, não tem respostas. E, pode crer, elas não fazem a menor falta.
Grandes talentos são complicados de decifrar. No fundo, até os medíocres não conseguem ser revelados por completo. Ser humano é guardar segredos. Quando a dona destes segredos é a maior voz do Brasil, opiniões sobre seus discos, suas entrevistas e suas posturas surgem por todos os lados. Elis, filme dirigido por Hugo Prata e que entrou em cartaz nos cinemas no dia 24 de novembro, não tem respostas. E, pode crer, elas não fazem a menor falta.
A opção por uma história que abrange a chegada de Elis Regina ao Rio de Janeiro até a sua morte foi mais que inteligente. Indo na contramão da maioria das cinebiografias nacionais, que gostam de reconstruir em detalhes infâncias sofridas e crises conjugais, Elis tem seu foco na intensidade que guiou todos os dias da vida da protagonista. A abertura, com a atriz Andréia Horta contra a luz, metamorfoseada e interpretando a canção de Belchior Como nossos pais arrepia e prepara o espectador para encontrar uma primeira Elis Regina, gauchinha que deixa Porto Alegre para gravar um disco no Rio de Janeiro. É o início da passagem de menina para mulher. Ganhar os palcos e as primeiras cicatrizes acontecem quase ao mesmo tempo e são retratados por uma fotografia com ares vintage, assinada por Adrian Teijido. A voz que se torna cada vez mais potente a cada apresentação e o corpo que se expressa cada vez melhor com a ajuda do novo amigo Lennie Dale, interpretado de maneira brilhante por Júlio Andrade. Ele e Andréia Horta, num exímio trabalho corporal, são os destaques do elenco, já que Lúcio Mauro Filho está fraco como Carlos Miele e Caco Ciocler aparece muito pouco, apesar de seu Cézar Camargo Mariano tem presença.
Muitos vão dizer que faltaram passagens e pessoas importantes para a carreira da cantora, como Tom Jobim e Milton Nascimento, mas como dito no início deste texto, Elis não é um filme de respostas ou de recriação de momentos. O que pode parecer um roteiro confuso, transmite com justiça a alma errante e sábia de Elis Regina. Notamos na construção feita por Andréia que sua preocupação principal era imprimir a essência da intérprete, o que vai além de refazer trejeitos. Elis é sobre uma mulher com talento e dúvidas na mesma medida. Cantar era o principal, mas o que vinha na carona do sucesso lhe incomodava. E isto está em cada cena, em cada emoção presente. Ver sua emoção ao descobrir que irá pisar no mesmo palco que Diana Ross diz muito mais sobre Elis Regina do que reproduzir seus espetáculos mais famosos, como o show Falso Brilhante.
Elis encerra com respeito e retrata a dor da perda com arte. Basta uma pesquisa no Google para saber que jornais e revistas daqui e de fora cobriram e debateram sua morte. A questão das drogas é mostrada com discrição no longa-metragem, assim como sua atuação durante a ditadura militar, um detalhe que ganha novo significado. A cena da entrevista que Elis concedeu em Cannes poderia muito bem ter acontecido na semana passada. Ela, que abominava qualquer tipo de censura e caretice, não ia gostar nada de conviver conosco nestes tempos sombrios que pairam em 2016. Escutando suas canções, vamos em frente, inspirados por sua força. Mais dia, menos dia, teremos que ser como nossos pais nesta batalha. Teremos que ser um pouco Elis.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.