Quando No Somos Ningum

Um texto sobre a relao entre pais e filhos baseado nas impresses de Eron Fagundes sobre o livro "A queda - As Memrias de um Pai em 424 Passos", de Diogo Mainardi

07/01/2013 01:09 Por Eron Fagundes
Quando Não Somos Ninguém

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Dedico este texto, extraído de minhas impressões sobre o livro A queda; as memórias de um pai em 424 passos (2012), escrito pelo brasileiro Diogo Mainardi em torno de sua trajetória no infortúnio de seu filho Tito, a meu pai, que neste quatro de outubro estaria completando 82 anos se há sete anos não tivesse sido colhido por um câncer de próstata agressivo  e arremessado para o cemitério. Assim, nestas relações entre pais e filhos, busco caminhar em minhas análises junto com Diogo para ver o quanto somos ninguém diante de certas situações e o quanto nossa soberba intelectual pode baixar ao melodramático de qualquer um (Diogo reconhece, ao longo de seu relato, que muitas de suas reações literárias à doença do filho não deixam de ser vergonhosamente sentimentais). Lembro que caminhar junto com Diogo não significa usar sua linguagem e suas ideias, mas estabelecer reflexões sobre essa linguagem e essas ideias para contrapontos e paradoxos que servem mais a este articulista do que a Diogo e talvez a um hipotético leitor que seria eu mesmo.

No entanto, ao mergulhar naquela que certamente é a infelicidade de sua vida, Mainardi chega a seu mais belo livro, mais completo, mais inteiriço narrativamente. Antes, em Polígono das secas (1995) sua desmistificação dos enredos de sertão era formalmente bem construída mas padecia de uma certa ausência de emoção estética. Diogo mesmo, em declarações, zombava desta necessidade, parecia que o que lhe interessava mesmo era um tipo de objetividade mais próxima do jornalismo em que o autor criara sua aura polêmica. O primeiro parágrafo de Polígono das secas diz logo a que vem: “O homem está a caminho do cemitério, com o cadáver do filho nos braços, envolto num lençol. De tanto chorar, as lágrimas acabam por ofuscá-lo, de modo que tropeça numa pedra pontuda e rola desastradamente caatinga abaixo. Chama-se Manoel Vitorino. O nome do filho é irrelevante.” Eis então: “Tito tem uma paralisia cerebral.” Em A queda a relevância do nome do filho é total. Diz mais o narrador: “Sou o pai de Tito. Só existo porque Tito existe.” Dentro de sua linguagem despojada, à maneira jornalística e não aquela de Graciliano Ramos (que ele parodiava, travessamente, em Polígono das secas), Mainardi se entrega a uma hipérbole falsamente irônica: mais dolorida do que irônica, o narrador não tem como enganar o leitor. Mas A queda, sente-se desde o início, não é uma coisa minúscula de um caso pessoal de Mainardi. A queda mantém toda a precisão da escrita do ficcionista de Polígono das secas, mas acrescenta uma emoção que goteja entre os interstícios secos das frases. Nunca se deve esquecer que literatura é acima de tudo emoção, embora uma literatura como a do francês Marcel Proust (citado amiúde por Diogo) e a do próprio Mainardi se esquivem constantemente de banalizar esta emoção. É, em termos simples, uma questão de felicidade estética: o que se diz, para qualquer assunto na vida, acertar na mosca.

Para não se circunscrever ao comportamento de choramingas, o narrador (primeira pessoa que se confunde com o próprio indivíduo do autor) exibe, com destreza e absoluto senso de proporções, o universo cultural e a fonte de ideias nascida deste universo. As relações estabelecidas sarcasticamente entre a história cultural humana e a aventura de Tito, o filho de Diogo, nesta terra áspera são o ponto notável de A queda. Desde o princípio, o narrador não oculta o jogo; diante da fachada arquitetônica de Pietro Lombardo que veio a gerar a porta da entrada do hospital de Veneza onde em acidente médico veio a causar a paralisia cerebral de Tito, Diogo exclama para sua esposa Anna:

“—Com esta fachada, aceito até um filho deforme.”

Deu no que deu. A vida de Diogo deu para trás em nome da arte. A magnífica arquitetura italiana tem sua correspondência literária nos lábios impiedosos do texto de Mainardi. Para que haja grande literatura, afirma o clichê, necessitamos do trágico. Dele vem tudo, inclusive o cômico e o grotesco, como comprova Diogo em seu livro.

Em seu último  romance, Contra o Brasil (1998), Mainardi se atirou a um vomitório linguisticamente inteligente mas ideologicamente estéril contra sua pátria. Diz Pimenta Bueno, a personagem de Contra o Brasil que é o alter ego do autor: “O Brasil é um terreno estéril! Aqui não brotam ideias! O Brasil murcha a imaginação, resseca o estímulo intelectual, definha o raciocínio! O país inteiro vale menos que o Estudo número 3, opus 10, de Chopin!” No capítulo 174 de A queda o pai culto e cosmopolita de Tito anota: “Quando o neurologista de Nova York recomendou que evitássemos permanecer em Veneza durante os meses de inverno, pensei em comprar passagens aéreas para o Rio de Janeiro. Por mais que eu repudiasse o Brasil, e eu repudiava o Brasil, jamais neguei que fosse um lugar quente.” E no capítulo 175: “O plano era permanecer dois meses. Acabamos permanecendo nove anos.” Ironia das ironias: rico, sábio e bem instalado na Europa, Diogo parecia estar fugindo  de muitas coisas que nos amedrontam no Brasil,  como ser vitimados por um erro médico na saúde pública, e acabou pagando o pato (por ele e por todos os brasileiros) na figura de seu filho ao optar por um caríssimo hospital de Veneza. Pode ter sido a grande tristeza da vida de Diogo, e, apesar do sarcasmo com que ele se recusa a confessar, sua grande incompreensão para com o que houve com ele e com seu filho. Triste vida, mas é certamente este lance paradoxal (fugir da pobreza brasileira para cair na perversidade da arte italiana), revelado com o verbo aqui genial de Mainardi, que permite  a literatura de escol. Má vida, grande literatura!

Antes um jornalista que um escritor no sentido clássico (por exemplo, escritor em sentido clássico o ficcionista mineiro recentemente falecido Autran Dourado), Mainardi é também, e caracteristicamente, um homem do século do cinema. Ele estrutura A queda em 424 trechos (pequenos capítulos) que simulam aqueles planos breves (uns mais, outros mais) duma montagem cinematográfica feita de respirações rítmicas em cada corte. O armazém de informações e ideias de Diogo circula pela  arquitetura, pela pintura, pela literatura. E não desdenha de algumas alusões cinematográficas. A principal delas parece ser a do trecho (ou passo) 47. Diogo aí lembra que artistas medievais ou renascentistas como o italiano Jacopo Tintoretto foram a influência  remota do cineasta inglês Alfred Hitchcock nesta mania de se inserir, ironicamente quase como um ícone anônimo da imagem, dentro de sua própria obra. Em A queda Diogo é o narrador, ocupa um grande primeiro plano; mas talvez o  narrador Diogo quisesse ser aquele sombra invisível de si mesmo dos filmes de Hitchcock, pois em muitos momentos desta autobiografia paterna se tem a impressão de que o narrador é Tito, de que Diogo deixou de existir quando Tito nasceu e Tito acaba sendo o símbolo do intelectual (o homem que sabe e raciocina) que um belo dia viu instalar-se em si uma paralisia cerebral —o intelectual sem cérebro é tudo o que o narrador de Contra o Brasil execra e que agora parece pender, gargalhando, nas evocações de A queda, como o que restou.

Mais uma amostra da impotência do saber de Diogo (paralisado pelo Destino) está no passo 145: “Eu sei ler. Ler é meu trabalho. Eu penso lendo. Eu sinto lendo. Quando recebemos o resultado do exame no hospital de Pádua, li sobre o sistema extrapiramidal. Nada do que li me preparou para o que estávamos prestes a descobrir.” E todavia, antes de tudo isto, mas narrado no livro depois, no passo 421, havia uma  coisa bem mais simples que “saber ler” (no sentido mais prepotente em que os literatos usamos), bem mais direta até, uma revelação tão desastradamente melodramática quanto a de qualquer pai: “Quando vi Tito na incubadora, no dia de seu nascimento, compreendi que o amaria e o acudiria para sempre.”

Outro escritor brasileiro, o catarinense radicado  desde a infância em Curitiba, Cristovão Tezza também  usou o episódio de ter um filho deficiente para expor sua literatura. Se Mainardi optou por uma crônica  autobiográfica, Tezza criou uma ficção que refaz as personagens reais: o resultado é o romance O filho eterno (2007). Tezza é mais o escritor clássico a que referi alguns parágrafos atrás. A linguagem de Tezza é até mais criativa, literariamente, que a de Mainardi, que confia (e em A queda se dá bem) nas farpas interlineares de sua literatura. Ambos os livros, o romance de Tezza e a crônica-ensaio de Mainardi, são exemplares superiores da arte da palavra, embora utilizem, com algum descaramento comercial (Diogo chega até a exclamar em sua narrativa  que explora e vai continuar explorando a doença de seu filho), o lado melodramático duma história real para atingir um público mais amplo do que o hedonismo cultural de Mainardi e os refinamentos verbais de Tezza permitiriam.

Divergentes em suas construções e modelos literários, A queda e O filho eterno se encontram nas interrogações finais, onde as personagens suspendem seus atos numa espécie de perplexidade do futuro. Escreve Diogo: “Tito retoma sua caminhada. Eu paro de contar seus passos.” Tezza conclui assim seu romance: “... vão enfim para a frente da televisão— o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois  tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom.” Claro: Diogo é mais retraído e escuso sobre sua própria perplexidade.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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