Duas Obras-Primas de Poe (Ja Filmadas)
William Wilson (1839) envereda pela quest?o do duplo e O po?o e o pendulo (The pit and the pendulum; 1843) eh um dos mais abissais textos de Poe
William Wilson (1839), do americano Edgar Allan Poe, envereda pela questão do duplo, o lado espelhado entre os seres humanos que pode aterrorizar. Este conto foi filmado pelo francês Louis Malle, que, apesar da excelência de seu cinema, não logrou aproximar-se da acuidade psicológica e estética de Poe.
“Pemiti que, por enquanto, me chame William Wilson. A página virgem que agora se estende diante de mim não precisa ser manchada com meu nome verdadeiro.”, assim começa o relato de Poe. A história é contada, em primeira pessoa, pelo próprio Wilson: ou por um deles. Acontece que a personagem de Poe vai descrever uma estranheza de seus tempos de colégio: topou um sósia, ou duplo, alguém (um colega) que parecia ser o próprio Wilson que narra. “Tudo são sombras cinzentas, recordações apagadas e imprecisas, indistinto amontoado de débeis prazeres e de fantasmagóricos penares.” Diante de seu outro espelhado, William Wilson depara com sua própria morte: termina um, termina o duplo. O frêmito dum conto como William Wilson vem da magia e da adequação da pena de Poe; o primeiro Wilson mata, num baile de máscaras, o segundo Wilson, irritado com a perseguição daquele que chama “seu adversário”, mas descobre, no sarcasmo final do outro, que matou a si mesmo. O suicídio é somente um dos lados do homicídio? “Mas que língua humana pode adequadamente retratar aquele espanto, aquele horror, que de mim se apossou diante do espetáculo que então se apresentou à minha vista?” Poe se aproxima desta língua; e mergulha, como um filósofo da ficção, na duplicidade ontológica do ser.
O poço e o pêndulo (The pit and the pendulum; 1843) é um dos mais abissais textos de Poe. Mergulha sua personagem-narradora no fundo de um poço inquisitorial que é no fundo um signo do próprio mundo em que se vive. Foi filmado pelo norte-americano Roger Corman, que é, ao que se diz, o cineasta que mais teria adaptado Poe para a tela.
“Eu estava extenuado, extenuado até a morte, por aquela longa agonia”, começa a criatura sem nome, acorrentada dentro dum poço, com uma culpa medonha que não sabe nada desta culpa. O conto é, na verdade, um mergulho em situações-limite do espírito a que as palavras de Poe emprestam toda a sua densidade e a sua inventividade. São visitas ao abismo interior de todos nós: abismos estranhos e, durante a vida, aplacados. “Depois disso, reevoco a monotonia e a umidade, e depois tudo é loucura —a loucura de uma memória que se agita entre coisas repelentes.” Há, nas evocações da personagem, imagens da cidade espanhola de Toledo, curiosamente onde se passa a insólita e esquiva história de Tristana, uma paixão mórbida (1970), o filme do espanhol Luis Buñuel. O narrador de Poe fala dos boatos dos horrores de Toledo, que sempre lhe acudiam à mente em sua estada no poço. “Narravam-se estranhas coisas de calabouços”. O ser intui que deverá morrer “no mundo subterrâneo das trevas”. Até que dá com o ameaçador pêndulo no forro da prisão em que está, o poço. À última hora, alguém o solta e ele não será cortado pela queda do pêndulo sobre seu corpo. Mas resta-lhe o terror de estar no poço É o terror do mundo, do qual não podemos sair? No parágrafo de encerramento chegamos a ler: “Houve um ruído discordante de vozes humanas!”. E a última oração aprofunda todas as ambiguidades, contradições e reviravoltas do humano: “A Inquisição caíra nas mãos de seus inimigos.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br