A Morte de Michel Houellebecq

O romancista francês Michel Houellebecq se põe como uma das personagens centrais de O Mapa e o Território

09/03/2015 16:53 Por Eron Duarte Fagundes
A Morte de Michel Houellebecq

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O romancista francês Michel Houellebecq se põe como uma das personagens centrais de O mapa e o território (La carte et le territoire; 2010). O protagonista é um pintor, Jed Martin. Precisando de um escritor para escrever o catálogo de um vernissage, pensa em Houellebecq, recorre a Houellebecq. Jed vai acabar pintando o romancista e produz o quadro Michel Houellebecq, o escritor. A literatura e  pintura se tocam, é verdade, pois, como notou certa vez o crítico italiano Umberto Barbaro, para além das diferenças materiais, a essência de todas as artes é a mesma. Mas o que está em jogo mesmo não é isto: é a natural transcendência com que o autor de Extensão do domínio da luta (1994) expõe um mundo de ruínas que se edificam. A escrita de Houellebecq tem um jeito pós-kafkeano, há uma estranheza e uma metafísica mais concretas que surge das sombras do cinema e da informática. Que faz a personagem Houellebecq dentro da própria ficção do escritor Houellebecq? Houellebecq pinta a si mesmo, mas não se sabe bem se o que ele diz é, por todos o ângulos, verdadeiro ou ao menos sincero, ou é a ironia de um contador de histórias magistral. Houellebecq está em O mapa e o território para morrer; morre no momento em que o quadro Michel Houellebecq, o escritor está sendo lançado, o que acaba tornando o autor do quadro, Jed, um milionário, pois Houellebecq deixou o quadro, com que o mimoseara o pintor, para o próprio Jed, o pintor.

Houellebecq tem brincado um pouco com um grande acontecimento trágico em sua existência. No filme O sequestro de Michel Houellebecq (2014), de Guillaume Nicloux, ainda inédito nos cinemas brasileiros, é inventado um sequestrador do escritor às vésperas do lançamento de O mapa e o território. Na verdade, o filme é um olhar marqueteiro para vendagem do livro. No romance O mapa e o território o escritor vai mais adiante: mata a personagem, faz com que nebulosos assassinos matem a Houellebecq, este das páginas do livro que se move numas curiosas sombras diante da pena do outro Houellebecq, o que escreve.

(Em 07 de janeiro de 2015 Houellebecq estaria assinando autógrafos de seu livro Submissão, uma visão-pesadelo duma França muçulmana. Já estava circulando um jornal de humor cáustico em que uma caricatura do romancista posava de profeta de si mesmo. No mesmo dia 07 de janeiro muçulmanos invadem a sede da revista e matam doze pessoas. Houellebecq teve de esconder-se. Numa entrevista dada na França o ano passado ao escritor brasileiro Juremir Machado da Silva, o francês dizia que o bom da literatura é que podemos mergulhar num turbilhão sem arriscar a própria vida. As declarações de Houellebecq estão atrás de sua literatura, que provam justamente o contrário, pois já estavam antecipando algo como o terror parisiense de 07 de janeiro).

Houellebecq mistura seres inventados com figuras reais da sociedade francesa. Uma invenção: Pépita Bourguignon, nominada crítica de arte do Le Monde. (Na época do lançamento de O mapa e o território uma analista chamada Marta centrava-se na personalidade fugidia desta personagem e, entre ironias, agradecia ao senhor Houellebecq a homenagem que fazia a todas as mulheres ao encarná-las na critica do Le monde, “no mundo”, de Pépita, parodiando a brincadeira da página do livro em que pela primeira vez aparece o nome da crítica de arte: crítica do Mundo, crítica do Le Monde). Uma pessoa de verdade: o escritor Frédéric Beigbeder. Para o leitor brasileiro, as nuanças entre as personagens inventadas e as reais podem escapar, pois as figuras da vida parisiense citadas e verdadeiras são desconhecidas entre nós, ficando Pépita e Frédéric num mesmo patamar da criação. Houellebecq, o escritor, se divide em retratar-se tanto na personagem que leva seu nome quanto no pintor, um artista como ele.

As circunferências tratadas a longo de O mapa e o território são extraordinárias. Se há um termo que englobe o texto de Houellebecq, este termo é impiedade. A impiedade de escrever, a impiedade de narrar. Principalmente agora quando começa a debruçar-se sobre si mesmo com o mesmo olhar onisciente que trata as suas criações: “Tamborilou, durante ao menos dois minutos na porta, fustigado pela chuva, antes que Houellebecq viesse abri-la. O autor de As partículas elementares vestia um pijama listrado que o deixava parecido com um presidiário de novela de tevê; seus cabelos estavam desgrenhados e sujos; seu rosto, vermelho, quase um pimentão; e ele fedia um pouco. A incapacidade de cuidar da própria higiene é um dos sintomas mais claros da instalação de um estado depressivo, lembrou-se Jed.”

O livro mais recente de Houellebecq chamou-se Submissão. Pela boca de Jed, Houellebecq escreveu que o artista é antes de tudo um submisso. Estranho foco para gerações que sempre meditaram no artista como alguém que rompe regras, um insubmisso. Porém, o submisso do artista não é ajoelhar-se: é estar submetido a mensagens misteriosas, imprevisíveis. O mapa e o território é um dos romances contemporâneos que mais produz este tipo de mensagem. Desde seu título simbólico: o mapa é a forma que pode tornar desnecessário o conteúdo territorial; ou será mesmo que o mapa pode substituir  território?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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