Alegorias Demoniacas na Alma

O alegorico fantasmagorico dirige a mao do cineasta sueco Ingmar Bergman em A Hora do Lobo

09/08/2020 03:42 Por Eron Duarte Fagundes
Alegorias Demoniacas na Alma

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O alegórico fantasmagórico dirige a mão do cineasta sueco Ingmar Bergman em A hora do lobo (Vargtimmen; 1967); as coisas se passam de maneira não realista, como simbolismos espirituais, mas a intensa crueldade daquilo que Bergman expressa com suas imagens é suprarreal, atinge o nervo da realidade de maneira incômoda. A encenação não tem a objetividade do realismo, tem desvios oníricos, incursões pelo pesadelo, vizinha com a fantasia do terror à maneira do expressionismo alemão (uma das fontes do cinema de Bergman), mas os estados espirituais filmados pelo cineasta são muito palpáveis e consistentes: não é uma fuga pela via simbólica, é um encontro dos símbolos com seus significados metafísicos.

As imagens em preto-e-branco do fotógrafo Sven Nykvist expõem a tensão  temática. O rosto de Liv Ullmann, centrando-se no olhar inquisitorial e na dureza de sua dicção, comanda boa parte da ação narrativa com divagações e leituras do diário da personagem de Max von Sydow topado pela criatura de Liv. Alma, a principal personagem feminina, vive numa ilha com seu conturbado marido Johann. Alma era a nome da enfermeira de Persona (1966), esta enfermeira estava na pele da atriz Bibi Andersson e permutava a personalidade com uma atriz a que a história de Bergman chamava Elizabeth Vogler, vivida por Liv. Como sabemos, atores habituais e nomes de personagens constroem o universo cinematográfico do cineasta: definem boa parte deste universo. No plano final do monólogo de Alma, em A hora do lobo, a personagem parece dirigir-se para o espectador: “Há uma questão na qual tenho pensado muito. Quero fazer uma pergunta. É o seguinte. Não pode ocorrer que uma mulher que tenha vivido muitos anos com um homem, não pode ocorrer que ela acabe, afinal, assemelhando-se a ele? Quero dizer, ela o ama e procura pensar e ver as coisas como ele.” O espectador é o visitante da cena, não aparece na imagem, não diz nada, ouve e vê. Nesta pergunta de Alma ela põe algo que constantemente perturbou a aproximação de Bergman a suas personagens, as identidades que se vampirizam, Alma se transforma em Johann, ao longo do filme, especialmente depois que ele no final é espancado por uma fauna de pesadelo que poderia não passar de seus fantasmas simbólicos, assim como a enfermeira Alma de Persona a certa altura se apropria da história e do espírito de Elizabeth Vogler. Em A hora do lobo há uma Vogler, Verônica Vogler, que é amante de Johann e quem lhe dá o físico é Ingrid Thulin: novamente, um nome duma criatura inventada pelo roteiro, Vogler, e uma intérprete costumeira nos planos de Bergman, Ingrid, remetem às características identificadoras dum universo plástico e estético.

A hora do lobo vai circulando as obsessões de Bergman e está entre aqueles filmes que mais aproximam o espiritualismo do cineasta duma narrativa de horror. É assustador, como Gritos e sussurros (1972), embora não tão profundo. Sem a complexidade de Persona, é mais alucinado e também mais sensorial em suas encenações. Numa cena, um plano rápido, numa ambientação elegante, refinada, renascentista, alguém tira do rosto uma máscara transparente, uma segunda pele falsa: o que escondemos por trás de nosso rosto? O estranho ser que afasta a máscara de seu rosto para ouvir melhor uma música que se está tocando naquela galante recepção de aristocratas, faz em seguida um gesto tão amedrontador quanto sua face sem máscara, assustadora: retira de si um olho e deposita este olho num copo.

Uma outra sequência mostra uma encenação breve dum trecho de “A flauta mágica”, de Mozart, referindo a paixão por esta peça musical que geraria o filme de Bergman de 1975: “a mais bela e a mais tortuosa música que jamais foi composta”, afirma uma personagem de A hora do lobo. Johann, que é pintor e no início do filme estava pintando sua própria mulher, o modelo humano mais próximo, afirma: “Eu me chamo de artista na falta de expressão melhor. Na minha criação não existe nada de autoexplicativo, a não ser a compulsão.” Em O rosto (1959) um artista, o mágico, também representado por Max von Sydow, já figurava os tormentos da arte que em A hora do lobo desfiguram o próprio visual narrativo. Nestes filmes Bergman está falando também de si mesmo e de sua arte.

A hora do lobo é feito, como Bergman foi cada vez mais depurando, de planos estáticos, áridos, dirigidos em vários modos pela rigidez interpretativa de Liv; nas sequências da festa entre os nobres da ilha (a máscara retirada, o olho extirpado, a música mágica de Mozart) os planos, sem abandonar inteiramente sua rigidez, buscam uma inusitada fantasmagoria tensa. Tido pelos analistas como uma obra à parte na filmografia de Bergman, por seu parentesco mais direto com o gênero de horror, na verdade A hora do lobo dialoga, sutil e profundamente, com todo o seu grande cinema, de Morangos silvestres (a cena do duplo morto do professor Borg numa carroça) e vai permutando-se com filmes como Persona (as influências de personalidades), O rosto (o que é um artista) e Face a face (1976; a experiência subterrânea do horror na vida e nas memórias das pessoas).

 

(O filme de Bergman se encontra, presentemente, disponível na internet: https://sesc.digital/colecao/42876/cinema-emcasacomsesc. Acesso gratuito.)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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