As Inquietacoes em Versos de Andre Caramuru Aubert
Poesia e prosa se aproximam bastante na arte de Andre Caramuru Aubert
Depois de conhecer a prosa de André Caramuru Aubert em três belos romances (Cemitérios, 2014; Poesia chinesa, 2018; Estevão, 2021), chega a hora de dar com sua poesia. Em três livros: outubro/dezembro (2015); as cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros (2016); se o que eu vi (2019). Na abertura do romance Cemitérios uma imagem descortina aquele universo, é como um plano (pictórico ou cinematográfico) que caísse de súbito na montagem do olhar do leitor: “Um tucano preto de peito muito amarelo, grasnando rouco, mas ainda assim estridente, cortou o céu azul daquela manhã de começo de verão.” O romance não deixa de ser um voo poético: ainda que escrito em prosa. Somos guiados um pouco por este pássaro que irrompe na primeira frase.
A poesia de André Caramuru Aubert tem seu pássaro, igualmente. Às vezes aproxima os versos do prosaísmo, como no poema 9 de “outubro”, “tempo II” (incluído no livro outubro/dezembro): “Você se lembra? / De nós dois sentados na areia da praia, / nos fins de tarde / enquanto as crianças brincavam de rolar até o mar, / imitando animais e objetos, que nós inventávamos”. Há algo de familiar e próximo na poesia de André Caramuru; mas há também a naturalidade de buscar nestas coisas caseiras ou prosaicas um sentimento de transcendência ao mesmo tempo que de proximidade: “a vida às vezes não é mais do que observar as folhas da palmeira na casa / do vizinho.”
Pulando para as cores refletidas, deparamos com os versos-ensaio. Reflexões como “elementos para uma teoria do poema”, a amplitude do conceito de poema. “qual é a substância, a alma, do poema?” Uma teoria, essa, feita de perguntas: os elementos de que fala o título. De quem o poema é mais íntimo, se indaga o homem de versos. Há poesia nas letras desenhadas no papel ou a há mais na luz que aparece na janela? “quem é mais dono do poema?” Eu que aqui escrevi sobre a poesia de André; ou eu (o eu) que em determinados dias fui (ou foi) capaz de apaixonar-me como demente, chorando e escrevendo em catadupas minhas banalidades? Não, não é isto; vamos separar os seres: “quem é mais dono do poema? O professor de teoria / literária que passeia com ar displicente, na / aula, entre Pound e Whitman, entre / Emerson e Eliot? Ou a adolescente apaixonada, e / abandonada, que chora e escreve, escreve e chora, e / diz que ama e perdoa, que perdoa e ama? Qual / será, enfim, a verdadeira substância do poema?” Nas lucubrações deste anotador de coisas assoma a lembrança de um filme, La dentellière (1977), do suíço Claude Goretta, onde um jovem intelectual que falava em Proust e dialética se envolve com uma jovem ingênua, aprendiz de cabeleireira, que se apaixona por ele, apesar dos abismos de percepções entre estas duas almas. Uma simbiose: poemas e o mundo de relações construído por Goretta em seu filme. Nos elementos... André traz a perplexidade desta simbiose do universo poético. “de onde será que ele brota?”
Aí chegamos ao terceiro livro de poemas de André. Se o que eu vi, ainda que funda o prosaísmo com investidas ensaísticas que vêm do mesmo jeito em que foram gestados os versos de suas obras poéticas anteriores, vai mergulhando em algum memorialismo íntimo, que também não estava ausente da experiência de seus trabalhos em versos que precederam a este. “keneth rexroth escreveu muitos poemas / cantando a saudade que sentia por sua / amada andrée, que morreu cedo, de problemas / derivados de epilepsia.” No tempo que não veio, pode haver uma memória disfarçada do próprio André. “eles fizeram algumas / boas caminhadas por trilhas em montanhas da Califórnia, / ocasiões em que namoraram, conversaram, planejaram / o futuro, futuro que, sabemos, foi interrompido, / lá de cima, do alto de algumas daquelas montanhas”. Num outro poema do livro, “Sonho com o Naum”, dedicado à memória do escritor e dramaturgo Naum Alves de Souza, o verso se abre simplesmente: “noite dessas sonhei com o Naum.” Amizades e amores que se perdem para a morte: memorialismo em poesia.
Poesia e prosa se aproximam bastante na arte de André Caramuru Aubert. Isto se distancia, por sua extrema modernidade, de certas coisas que o modernismo brasileiro de 1922, feito em São Paulo, terra de André, exala quando relemos hoje, por exemplo, o clássico Pauliceia desvairada (1921), de Mário de Andrade: apesar de inquieta, mesmo revolucionária exaltação de Mário, uma das cabeças mais brilhantes de nossa história literária, o que aparece amiúde nos versos da Pauliceia são sombras do parnasianismo, pós e levemente decadente, as chamadas teorias-avós a que o próprio Mário alude, o parnasianismo seguia fazendo das suas nos versos de Mário. André, porém, vai noutra: parece ter mais liberdade para com as teorias-avós.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br