A Complexidade das Relacoes Politicas no Universo de Lucia Murat
De todos os pontos notaveis de O Mensageiro, Lucia traz uma sacada fina


O mensageiro (2023) é um dos mais complexos relatos políticos da cineasta brasileira Lúcia Murat. Na maturidade de seu cinema, Lúcia chega aos tons e meios tons para além dos estereótipos ideológicos basicamente formados a partir dos anos 60 do século passado. Toda a obra da realizadora, de Que bom te ver viva (1989) a Ana. Sem título (2020), está atravessada pela experiência política que marcou a juventude de Lúcia, como prisioneira submetida às torturas nas prisões do regime, e isto determina o próprio processo de linguagem da encenação de seus filmes. São filmes políticos mas muito longe do sentido do político de Constantin Costa-Gavras ou ainda Gillo Pontecorvo. Lúcia Murat faz sua fusão muito particular entre a ficção (uma estrutura) e a realidade (na memória), em concepções estéticas diversas como em Uma longa viagem (2011) e em Em três atos (2015). Tudo é difuso e complexo; e em O mensageiro a complexidade apresenta seus tentáculos.
A história contada no roteiro da diretora e de Tunico Amancio mostra as relações entre um soldado a serviço da ditadura militar e a família duma jovem prisioneira do regime a cujo suplício ele assistira no cárcere. As relações entre os dois lados da moeda brasileira nos anos 60 e 70 é investigada com serenidade e sensibilidade —apesar dos aspectos sombrios de tudo o que se vê— por Lúcia. O soldado não chega a ser o torturador mas é um serviçal do governo militar; não há entre ele e a vítima da tortura uma relação mais próxima ou carnal, como aquela de O porteiro da noite (1974), de Liliana Cavani, mas ao observar consternado a vítima e depois contatar com os pais da prisioneira entregando-lhes os bilhetes da filha, o soldado aproxima-se intimamente do espírito da prisioneira. O soldado namora uma outra moça do lado de fora do ambiente carcerário; em certos momentos sua mente se nubla e a imagem da namorada se permuta com a imagem da encarcerada. A religião é outro polo que surge: a mãe da jovem militante presa é cristã, assim como o soldado passivo diante dos horrores da tortura; o olhar de Lúcia Murat para a religião, filmando missas, o padre, inserindo diálogos, é interrogativo. Que significa a religiosidade primitiva em tempos duros como aqueles?
De todos os pontos notáveis de O mensageiro, Lúcia traz uma sacada final. Ela própria, Lúcia Murat, está dando uma aula sobre a dialética em que os torturados devem ouvir os torturadores, ainda que num julgamento, e cita a alemã Hanna Arendt e sua posição diante do nazismo. Nos créditos, Lúcia é dada como a personagem da professora; esta professora seria a ex-prisioneira política Vera anos depois, em seus setenta anos, refletindo sobre suas relações de torturada com o soldado que assistiu a seus sofrimentos e foi seu mensageiro para levar notícias à família?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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