Fêmea Versus Macho: A Guerra Sexual Entre Artistas
Júlia Murat, conquanto seja filha da prestigiada cineasta Lúcia Murat, ultrapassa de longe a sombra de sua mãe e já constrói, com apenas dois filmes, uma das mais originais e inquietas obras cinematográficas brasileiras
Júlia Murat, conquanto seja filha da prestigiada cineasta Lúcia Murat, ultrapassa de longe a sombra de sua mãe e já constrói, com apenas dois filmes, uma das mais originais e inquietas obras cinematográficas brasileiras. Pendular (2017) é seu segundo filme e confirma o rigor, a sensibilidade e a ausência de concessões à vulgaridade do cinema que já faziam de seu filme de estreia, Histórias que só existem quando lembradas (2011), um belo interstício que transformava a ficção em excertos documentais.
Pendular persegue a paixão detalhista, para o cenário e para o gesto do ator, que está no coração do processo de filmar de Júlia. Ao despojamento visual vem corresponder um despojamento verbal, de diálogos, onde situações triviais são expostas mesmo numa arquitetura linguística direta, em sintaxe e vocabulário. As características do cinema de Júlia não se alteraram desde Histórias que só existem quando lembradas: é mesmo como um pêndulo que exacerba o rigor e a sensibilidade para os aprofundar humanizando o lado estético e técnico da sétima arte.
No centro da trama de Pendular está um casal de artistas: ele é escultor e ela é bailarina. O cenário onde eles vão encenar seu amor seguidamente desajustado é um galpão vazio no subúrbio duma metrópole. No começo do filme os dois brincam, fazendo dum objeto de papel uma bola para exercitar um conflito futebolístico: o corpo-a-corpo do esporte parece uma premonição dos contatos sexuais ao longo do filme, que serão fortes, quase explícitos, diz-se até que provocou inquietações em alguns debates porque se suspeitava que os atores teriam ido a vias de fato, o que era naturalmente negado pelos intérpretes e pela diretora, cujo cinema enfim anda próximo duma realização sexual autêntica. O pêndulo, que pode ser? A arte, o sexo.
Dividido em capítulos como um romance, impondo-se uma estrutura um pouco literária (ainda que as palavras estejam despidas de floreios, correspondam às ruas), Pendular acumula atmosferas, às vezes elípticas, em duas partes, indicando chaves com títulos como ímpeto, ação, contração. Contração é um duplo: a mulher engravida, embora tenha rejeitado a proposta inicial de seu companheiro (“quero lhe dar um filho”, inversão ou tomada do papel habitual da mulher), e vamos ter contrações; mas pode ser contra-ação, o movimento contrário à ação da parte anterior. Oscilando dentro do cenário fechado entre a dança, os esculpidos e a batalha dos corpos (o sexo: ferinamente, numa cena a mulher subverte o jogo e sodomiza o homem montando nele e penetrando-o com a fúria de seu braço), Pendular tem alguns momentos de delírio visual-sonoro: a bailarina toca e retoca numa grande folha cinza pendurada no cenário criando um efeito de sons inusitado. Há também imagens que simulam fugir ao olhar: alguém está ali e de repente já não está, daqui a apouco voltamos a ver o que nos fugiu. Há imagens superpostas: a protagonista vê um vídeo, cenas estranhas de manicômio dialogam com as imagens da mulher no galpão.
O coeficiente de sinceridade das relações do casal brasileiro contemporâneo já nasce desde o roteiro, escrita a quatro mãos pela cineasta e por seu companheiro, Matias Mariani. Em termos interpretativos, a gaúcha de Itaqui, na fronteira oeste, Raquel Karro conduz com garra o ritmo narrativo; ela começou no circo, fez teatro e agora começa a tatear no cinema, e topou o universo fragmentado e dilacerado de Júlia para bem a acolher. Raquel saiu de sua cidade natal aos 15 anos de idade, estudou arte dramática na UFRGS em Porto Alegre e foi ter ao Rio de Janeiro, onde seus sonhos maiores finalmente se materializam.
Em Porto Alegre o filme teve uma sessão comentada coordenada pelo jornalista Roger Lerina e com o depoimento da atriz Raquel Karro. O que foi um belo complemento de informações sobre esta realização fundamental dos caminhos atuais de nosso cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br