O Conhecimento do Homem como Farsa
Bouvard e Pecuchet, ainda que lhe falte algo em seu acabamento final, talvez seja, por sua ambicao e execu??o, o mais belamente agudo de tudo quanto Flaubert escreveu


No calor da hora, o romancista e contista francês Guy de Maupassant declarou num artigo, logo após a publicação do livro: “De todas as obras do magnífico escritor, essa é seguramente a mais profunda, a mais rebuscada, a mais ampla; mas, por essas mesmas razões, talvez ela seja a menos compreendida.” Maupassant falava de Bouvard e Pécuchet (Bouvard et Pécuchet; 1881), o testamento literário em forma de romance de Gustave Flaubert, que falecera no fim de 1880. Flaubert ainda redigia esta sua narrativa quando a morte o colheu, aos 58 anos: uma hemorragia cerebral, escreveram os apontamentos médicos da época; provavelmente um AVC, dizem os historiadores e biógrafos de hoje. Maupassant conhecia bem a Flaubert: privava com ele nos meios literários e chegou a compor um estudo sobre Flaubert, um ensaio. Em Bouvard e Pécuchet o “idiota da família”, assim apodado por Jean-Paul Sartre, põe em cena literária a própria idiotice humana sob a forma de conhecimento: faz sua enciclopédia do século XIX ao mesmo tempo em que a cognomina de farsa, rindo-se de tudo. O que lhe interessa ao propor capítulos de um romance onde cada capítulo vai fazendo desfilar fragmentos do conhecimento do homem (a biologia, a química, a filosofia, a matemática e tudo o mais), nisto o que lhe interessa é armar uma estrutura de ficção que se valha das ideias como personagens, algo que fugisse às facilidades romanescas de seu tempo e em algum modo antecipa os modelos de algumas literaturas mais cerebrais do século seguinte. Embora admire seu patrício, Flaubert é o anti-Balzac, pelo rigor ascético da escrita e por um despojamento emocional que nunca inquieta a Balzac.
A disparidade de caminhos que Flaubbert percorre com seu livro, tendendo a uma desuniformidade narrativa é resolvida pelo narrador ao pôr como condutores da ação e da consciência do livro duas criaturas, Bouvard e Pécuchet, antípodas que se convertem num só ser para gladiar no palco daquilo que o homem imagina conhecer. O extenuante trabalho e a constante pesquisa de Flaubert, que é ele próprio uma consciência da idiotice da espécie, para evocar de novo Sartre, o para-idiota, são lavrados em Bouvard e Pécuchet com senso literário absoluto. Ainda hoje, neste transbordante 2025, o romance parece tão avançado que não logrou a compreensão que Maupassant já antevia difícil; mesmo em sua incompletude e suas rupturas (a morte de Flaubert foi a pedra no meio do caminho na composição flaubertiana), Bouvard e Pécuchet, ainda que lhe falte algo em seu acabamento final, talvez seja, por sua ambição e execução, o mais belamente agudo de tudo quanto Flaubert escreveu. É aqui que o leitor encontra a plenitude da alma do escritor.
P.S.: Nunca li antes Bouvard e Pécuchet. É uma leitura tardia, agora quase aos 70. Estas divergências temporais acabam por determinar a visão de um livro por parte de quem lê.
Trecho do romance: “Leurs paroles coulaient intarissablement, les remarques succédant aux anecdotes, les aperçus philosophiques aux considérations individuelles. Ils dénigrèrent le corps des Ponts et chaussées, la régie des tabacs, le commerce, les thêatres, notre marine et tout le genre humain, comme des gens qui ont subi de grands déboires. Chacun en écoutant l’autre retrouvait des parties de lui-même oubliées; —et bien qu’ils eussent passé l’âge des émotions naïves, ils éprouvaient un plaisir nouveau, une sorte d’épanouissement, le charme des tendresses à leur début.”
Tradução: “Suas palavras escorriam sem parar, as observações sucediam às anedotas, as questões filosóficas às considerações triviais. Eles denegriram os funcionários das Obras Públicas, o monopólio do tabaco, o comércio, os teatros, nossa marinha e todo o gênero humano, como se fossem pessoas que tivessem sofrido grandes amarguras. Cada um, ao escutar o outro, reencontrava partes esquecidas de si mesmo; e, ainda que já tivessem passado da idade das emoções incautas, experimentavam um prazer novo, algo como uma floração, o encantamento do início das afeições.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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