A Estranheza Gotica de um Melodrama
A mulher do tenente frances eh um filme sobre a fantasia de personagens distanciadas no tempo
Na primeira cena vemos algumas imagens de época que logo se revela uma contemplação sobre um set de filmagem; esta revelação se dá pela inserção da habitual placa do diretor em que se define a ordem do plano e depois pela voz que ordena, “ação”. Mas na sequência da narrativa este recurso de metalinguagem desaparece da encenação. O cineasta alterna, com equilíbrio de extremo rigor, a história de época, que se passa na Inglaterra vitoriana, e a história do século XX, que acontece no tempo contemporâneo da realização do filme e que mostra os intérpretes da história de época enquanto trabalham na encenação da primeira história. A cena inicial, especialmente, e algumas outras em que os atores do mundo do século XX leem algumas falas de suas personagens de época, num caderno, aclaram bem: os intérpretes ou trabalhadores cinematográficos estão no interior da Inglaterra fazendo seu filme que se passa em tempos antigos; o que a alternância entre os dois enredos compõe é uma sinuosa e sutil relação entre as duas histórias, fazendo com que haja ascendência dos conflitos morais, espirituais, amorosos de época sobre aquilo que os seres do século XX que recriam a Era Vitoriana vivem em seu próprio tempo. No fundo, o espírito do filme de época, melancólico e delicado, acaba impondo-se aos próprios trechos atuais; carroças antigas e automóveis e telefones se permutam e confundem, sem que sintamos as diferenças —as essências da alma humana se deslocam sempre da mesma maneira.
A mulher do tenente francês (The french lieutenant’s woman; 1981) é o único filme do diretor inglês (nascido na Tchecoeslováquia) Karel Reisz que passou à história. Com roteiro extraordinário de Harold Pinter (extraído dum livro de John Fowles), a bela faixa musical trazida por Carl Davis (há Mozart ali) e a criativa fotografia de tons desmaiados e fugidios de Freddie Francis, a realização tem rigor e sensibilidade bem britânicos: os aspectos góticos do universo encenado são bem trabalhados e emoção, humana e estética, atinge densidades que ainda perfuram a retina do observador.
Demais, a dupla central de atores exubera. Jeremy Irons aparece, pela primeira vez com destaque, num filme; sua interpretação adota o equilíbrio entre o antigo e o atual exigidos pela própria ideia básica da história. Meryl Streep, ainda uma atriz ascendente, já era conhecida da indústria por Manhattan (1979), de Woody Allen, e mais porque estrelara um melodrama de Hollywood, Kramer versus Kramer (1979), de Robert Benton; mas em A mulher do tenente francês ela dá ao espectador talvez o mais original, o menos hollywoodiano de seus desempenhos, chegando a expressões melancólicas de grande profundidade e beleza; é Meryl num de seus pontos de paixão pela arte de interpretar; se Jeremy equilibra a época e o atual, Meryl puxa para o gótico de época inclusive suas aparições no contemporâneo, criando uma estranheza própria —o que ajuda a dar certos contornos aos vagares misteriosos de sua personagem vitoriana, Sarah. No dueto de atores, cheio de coisas excelsas ao longo do filme, há um momento de sombria poesia gótica que pode remeter a certos filmes europeus de sensibilidade intelectual dos anos 60: Jeremy, na pele de Charles, o nobre de época, deixa sua pretendente na beira da plataforma de cimento que dá no braço de mar e vai ver o que está fazendo aquela mulher misteriosa, a personagem de época de Meryl, junto das águas, quase entrando mar adentro e um pouco encoberta pela força das ondas que sobem à plataforma; num determinado instante a câmara mostra dois planos essenciais, o rosto de Jeremy e o rosto de Meryl, num cruzamento de olhares e expressões faciais: é um instante de extrema magia e agudeza da narrativa de Reisz.
Sarah, a mulher que tinha o imaginário do tenente francês mas foi perder a virgindade com Charles, vai ser encontrada por ele depois nos guetos de prostitutas londrinas, desfigurada. Anna, a atriz que a interpreta, apaixonada por seu parceiro de cena, Mike, a partir das personagens do filme em que trabalha, tem uma difusa vida dupla, pois, casada, é procurada por Mike, também casado e com filhos, numa sociedade em que os conceitos morais, apesar das aparências, não mudaram tanto assim na essência. A mulher do tenente francês é um filme sobre a fantasia de personagens distanciadas no tempo (tanto os homens como as mulheres), mas também sobre as relações que esta fantasia sempre traz para as realidades sociais.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br