O Capitao Entre Dois Amores

Paixao de amor parte de um antigo romance italiano Fosca (1869), de Igino Ugo Tarchetti

17/12/2020 14:03 Por Eron Duarte Fagundes
O Capitao Entre Dois Amores

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Apesar de, naqueles anos, o cinema do italiano Ettore Scola já ter uma saída junto ao público, Paixão de amor (Passione d’amore; 1981) passou à margem do circuito comercial brasileiro; em Porto Alegre creio que sua única exibição se deveu à programação do filme na II Mostra Internacional de Cinema de Porto Alegre, em maio de 1984, um evento cinematográfico do Clube de Cinema de Porto Alegre, então presidido por Marco Antonio Bezerra Campos. Talvez a retração dos distribuidores se devesse à morbidez esquisita e claustrofobicamente melodramática  da encenação de Scola, no que ele fugia um pouco (não inteiramente) ao processo fílmico de Um dia muito especial (1977), que um tempo antes fascinara setores da plateia.

Paixão de amor parte de um antigo romance italiano Fosca (1869), de Igino Ugo Tarchetti. As características de coisa antiga e estranhamente fora de moda naquele início dos anos 80 parecem mesmo saltar das páginas duma história antiga para o universo convertido em imagens por Scola. No entanto, é notável observar como o precioso estilo de encenação histórica do realizador permanece íntegro, passadas quatro décadas, ao desenhar uma relação de fascínio com o espectador. Penso que em Paixão de amor as formas de aproximação aos sentimentos das personagens e a composição de cenários históricos e sociais têm uma atmosfera viscontiana, especialmente o Luchino Visconti de Sedução da carne (1954); sabe-se que Visconti é uma das influências no cinema de Scola e no começo dos anos 80 se materializou de maneira muito forte em três filmes: O terraço (1980), outro inédito nos cinemas daqui, este Paixão de amor e concluindo-se com Casanova e a revolução (1982); o tipo de refinamento ético, estético, cultural que Scola produziu nestes filmes se alteraria na espécie de beleza formal erigida numa obra como O baile (1983).

Quem conta a história em Paixão de amor é a própria personagem central, Giorgio, um capitão do exército italiano que passa boa parte da narrativa em campanhas antigaribaldinas, aquelas em que as tropas oficiais enfrentavam, nos anos 1860, os rebeldes de Garibaldi. Logo no início a voz narradora de Bernard Giraudeau (o ator que interpreta Giorgio) vai falando sobre as imagens. A primeira paixão relatada traz a voluptuosidade carnal: Laura Antonelli (de O inocente, 1976, de Visconti, e de Esposamente, 1977, de Marco Vicario) exibe seus atributos devorados por Giorgio/Bernard, na pele de Clara. Depois, designado para lutar Itália afora, o capitão Giorgio encontra a feia e esquisita Fosca, prima do coronel que o hospeda, Fosca se apaixona por Giorgio e aos poucos o envolve nesta paixão; Valeria d’Obici corresponde plenamente aos delírios desta paixão do feio. Entre as superfícies da carne (Clara) e a loucura interior que se esconde dentro dum físico desgracioso (Fosca), Giorgio é aprofundado em seu retrato cinematográfico por Scola. Temos de tudo nesta antiguidade bem feita em termos de cinema: o amor louco abissal, o duelo de honra entre Giorgio e o ofendido primo de Fosca que julga que seu hóspede abusou da parenta.

No fim do filme, Scola abre bem a questão narrativa: Giorgio está contando sua história para um anão manco. Concluído o relato, o anão levanta-se, exibindo seus aleijumes, e dispara a rir, exclamando: “que história absurda! Giorgio e Fosca!” O anão é um pouco como o espectador daquela época, que não compreendeu os agudos caminhos subterrâneos do filme de Scola. Revelar que a história foi contada a um anão reitera alguns processos desmistificadores da arte de Scola: o cinejornal que narra em Um dia muito especial e a introdução da revolução sob a forma de espetáculo circense no início de Casanova e a revolução. Absurda mesmo era a criatividade de Scola naqueles anos: assistimos a tudo como um anão descadeirado.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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