Bioy Casares, o Escritor Que Queria Ser Cineasta

A Invenção de Morel (1940), novela do argentino Adolfo Bioy Casares, segue a linha de interceptar as relações de espaço-tempo relativas às produções de imagens

16/01/2015 15:34 Por Eron Duarte Fagundes
Bioy Casares, o Escritor Que Queria Ser Cineasta

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Em Um olhar a cada dia (1995), filme dirigido pelo grego Theo Angelopoulos, um homem saía em busca de rolos de um filme nunca revelado antes porque a técnica usada para suas filmagens ainda não tinha uma correspondência técnica de revelação em seu tempo: um filme rodado para as gerações futuras, um diretor de cinema com um olho no tempo-além. Em O céu de Lisboa (1995), filme do alemão Wim Wenders, um diretor de cinema quer filmar sem olhar pelo visor da câmara e sem revelar as virtuais imagens produzidas por sua máquina; experimentar um filme sem passado de projeção que desabasse de repente sobre uma geração que não era a sua. Filmes feitos numa determinada época para serem vistos muito tempo depois: supõe-se que o público contemporâneo da realização dos filmes estaria despreparado. Na literatura inglesa o ficcionista E.M. Forster compôs entre 1913 e 1914 um de seus mais belos romances, Maurice, hesitou muito para publicá-lo, a publicação só veio depois da morte do autor, que faleceu em 1970 e o livro veio a lume em 1971: Forster teria medo da reação do público.

A invenção de Morel (1940), brevíssima novela do argentino Adolfo Bioy Casares, segue também esta linha de interceptar as relações de espaço-tempo relativas às produções de imagens. Um náufrago, foragido duma Justiça que o condenou por motivos políticos, desembarca numa ilha e vai relatando com realismo e argúcia seus movimentos neste isolamento e os movimentos que cercam este isolamento; descobre uma casa de máquinas e um universo de pessoas junto a este universo; pesquisando, observando, dando com um caderno de notas de um tal Morel, desvenda o mistério: Morel é o inventor duma máquina que fabrica imagens em terceira dimensão e as pessoas ali são companheiros deste Morel que gravou todos os movimentos eternizando as figuras, situando-se num espaço-tempo de morte-vida onde a imagem é ao mesmo tempo uma repetição ao infinito da vida passada e o oposto da vida presente do náufrago, as imagens são mortas embora se discuta a existência de uma alma nelas. Como o filme de Angelopoulos e o de Wenders, a narrativa literária de Bioy Casares põe em confronto uma civilização passada (pela existência de imagens em terceira dimensão que se cruzam com a realidade atual) com uma civilização presente (que é quem recepciona aquelas imagens antigas como se fossem atuais). Desfeito o feitiço do tempo e provada a incomunicabilidade entre a imagem e o real, a personagem não deixa de alienar-se no poder da imagem; senão, como explicar o misterioso e injustificável pedido do narrador-personagem no parágrafo final (“Ao homem que, com base neste informe, invente uma máquina capaz de reunir as presenças desagregadas, farei uma súplica. Procure a Faustine e a mim, faça-me entrar no céu da consciência de Faustine. Será um ato piedoso.”)?

Dizem que A invenção de Morel é ficção científica. Categoria questionável. É, sim, um texto de cunho fantástico escrito como uma crônica da realidade; as frases pausadas, medidas do escritor não parecem estar falando de uma fantasia, mas de uma realidade fantástica, não se abrem para os exageros da imaginação, elaboram seus inventos temáticos com um rigor de pensador. Lembra um pouco os enredos policiais-metafóricos do tcheco Franz Kafka. É como se Bioy Casares se despisse de seus orgulhos de escritor para se transformar num homem de imagens, um cineasta. A invenção de Morel é o primeiro livro-cinema e um exercício de crítica cinematográfica sob a forma de ficção; o objeto desta crítica não é um filme, mas este próprio livro-cinema onde sujeito e objeto se permutam, confundindo-se. Assim como ocorre nos filmes de Angelopoulos e Wenders citados na abertura deste texto: obras de arte voltadas sobre si mesmas, egocêntricas, narcisistas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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