A Moral Sexual Segundo Tolstoi
A sonata de Kreutzer permanece de pe como uma iluminacao sobre nosso lado sombrio e inconfessado
A sonata de Kreutzer (Kreutzerova sonata; 1889) é a novela anticonjugal e antissexual escrita pelo russo Lev Tolstoi. Concebida, numa espécie de delírio muito particular do ficcionista, como uma diatribe contra o casamento, as relações sexuais inconsequentes e a libido nascida das visões dos corpos femininos, a narrativa de Tolstoi obedece às linhas duma construção ficcional de tese que busca engessar-se em raciocínios e fatos estereotipados, algo em que muitas vezes incorreu outro grande autor do século XIX, o francês Honoré de Balzac; o que salva A sonata de Kreutzer da moral sexual arcaica e das edificações planas das personagens, bem ao contrário permitindo que a literatura penetre no obscuro erótico e aprofunde os caracteres levantados, é o gênio criativo de Tolstoi, sua notável e única alma de artista. Tolstoi pretendia comprovar uma tese, hoje em dia bastante difícil de sustentar, e no entanto produziu um texto abissal, incógnito, inconcluso e misterioso como geralmente são as obras literárias significativas, que abrem caminhos. Apesar de seu moralismo burguês e machista, o texto de Tolstoi escandalizou o moralismo burguês e machista de seu tempo e seu país: como o francês Gustave Flaubert e o inglês D.H. Lawrence, cada um em seu território, as exacerbações carnais de Tolstoi foram proibidas, banidas, depravadas (curiosamente ele atacava os depravados). Segundo comentários históricos, Tolstoi foi um obsessivo sexual: no fim da vida, atirou-se ao misticismo culpado. É destes choques entre o prazer e a culpa que A sonata de Kreutzer extrai sua autêntica grandeza.
A sonata de Kreutzer passa-se durante uma viagem pela via férrea em que o narrador central está a bordo. Mas não é este primeiro narrador que detém o interesse da trama de Tolstoi. O interesse mesmo se deposita no segundo narrador, um outro passageiro do trem. No início da novela, o primeiro narrador surpreende o segundo narrador às voltas numa discussão com uma mulher: o homem descreve a mulher em geral e o desejo despertado pela visão feminina com fúria moralista, no que a mulher interlocutora o contradiz. Uma das sentenças deste segundo narrador é: “Se a centésima parte dos esforços que se fazem no tratamento da sífilis fossem utilizados para erradicar a depravação, deixaria de existir sombra de sífilis.” Dá para imaginar o que diria Tolstoi na era da AIDS; e que livros maravilhosos ele poderia levantar: a despeito.
O corpo mesmo do enredo de A sonata de Kreutzer: quando o segundo narrador passa a narrar ao narrador central “o seu caso”. De como surpreendeu sua mulher num possível adultério com seu professor de música, de como a matou a facadas, de como o sexo destruiu seu casamento, de como seu casamento destruiu sua vida. Intercalando o relato do segundo narrador (o primeiro narrador assume praticamente a posição passiva e à margem do leitor, é como se o relato fosse amiúde diretamente para o leitor) com inserções dos ambientes e movimentos dentro do veículo (“Entrou o revisor...”) e no exterior à distância (“Lá fora começava a amanhecer), A sonata de Kreutzer é uma descida ao inferno duma personagem (“Na meia-luz do amanhecer eu não via a cara dele, apenas ouvia a sua voz cada vez mais emocionada, sofredora", aduz o primeiro narrador sobre as partes finais do relato do segundo narrador). Polemicamente agressivo (“Por que são proibidos os jogos de azar e não as mulheres que se vestem com trajos de prostitutas, trajos que provocam a sensualidade? São mil vezes mais perigosas!”), Tolstoi foi muitas vezes odiado, historicamente, nesta sua novela: pelos moralistas, por detalhar os movimentos libidinosos do homem; pelas feministas, por seu machismo retrógrado, por sua moral sexual antiquada. No entanto, somente a um artista como Tolstoi uma irracionalidade travestida de tese racional não faria soçobrar seu trabalho. A sonata de Kreutzer permanece de pé como uma iluminação sobre nosso lado sombrio e inconfessado.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br