Quando a Personagem Se Converte em Autor
A maestria de Georges Simenon em evocar situações e sensações do cotidiano é máxima no livro Maigret Se Diverte
Os meios ou os processos pelos quais uma personagem se converte em autor da narrativa são mistérios da literatura, nem o criador penso que saiba. Uma personagem é uma invenção do autor, um autor é um pouco a personagem em que se traveste o criador, que é o homem real de onde tudo parte. Lendo as histórias do belga Georges Simenon em que o inspetor Jules Maigret é o protagonista, tem-se a impressão de que quem escreveu a história é Maigret; Simenon, em seus textos aludidos, é, pois, Maigret, deixa de existir em parte para que Maigret tenha vez. Isto aconteceu um pouco para que o espanhol Dom Quixote de la Mancha pudesse existir: o escritor Miguel de Cervantes se apagou na figura de Quixote, ao mesmo tempo em que ali luziu.
Um dos romances em que isto fica bastante claro é Maigret se diverte (Maigret s’amuse; 1956). A mestria de Simenon em evocar situações e sensações do cotidiano é máxima neste livro. Ao longo de toda a narrativa, Maigret está em férias: mas praticamente não consegue sair de Paris, seu habitat o ano todo, especialmente depois de ler uma matéria cuja manchete dizia: “Um cadáver no armário”. O instinto policial da personagem de Simenon é atraída hipnoticamente para as palavras no jornal.
Num dos primeiros parágrafos, Simenon descreve a situação de Maigret, em sua residência, num dia em que deveria estar trabalhando, mas estava em casa. É uma situação comum a todos os que se dispõem a frequentar o cotidiano de um lugar num horário em que habitualmente nunca se encontrava lá. Acontece com todos nós: a arte de Simenon está no achado de fazer, com palavras simples, numa situação simples, uma novidade literária —um ovo de Colombo dentro da ficção de Simenon. O escritor vai além: compara a vadiagem de voyeur da personagem a uma outra vadiagem remota desta mesma personagem, quando faltava à aula na infância por motivo de doença e espiava o zunzum em torno de sua casa num dia em que normalmente estava afastada de casa.
Eis o parágrafo exemplar:
“Estar à janela, em plena metade da manhã, observando distraidamente o vai-e-vem da rua, seguindo com os olhos os caminhões que entravam e saíam do armazém em frente, dava-lhe uma sensação que o transportava para alguns dias da sua infância, quando sua mãe ainda vivia e ele não ia à escola, por causa de um grupo ou porque não havia aula. A sensação, de certa forma, de descobrir ‘o que acontecia quando ele não estava lá’.”
Nos curtos parágrafos anteriores Simenon/Maigret descreve os caminhões de um armazém manobrando sob as orientações dum manobrista-externo, um “velhinho de barbicha”. E onde estava o comissário? “Ele estava à sua janela, no Boulevard Richard-Renoir, fumando um cachimbo em baforadas lentas, sem paletó, sem gravata, e, atrás dele, em seu quarto, sua mulher começava a arrumar a cama.” O leitor parece ver tudo com uma limpidez visual, como num filme do francês Jean Renoir, que foi amigo de Simenon: os caminhões, o velhinho de barbicha orientando os motoristas, a câmara se desloca para a janela onde se vê Maigret e, no mesmo plano da janela, em segundo plano, talvez levemente desfocado, “atrás dele”, a esposa que se põe a arrumar o leito. Tudo para culminar naquele parágrafo de memória, uma mistura de tempos narrativos, tão bom quanto os longos parágrafos conectivados de outro francês, Marcel Proust, mas quando operando por modo diferente.
Mas não estamos ainda diante de tudo. “Tudo” está no capítulo III, titulado “A opinião dos namorados”. Maigret, acompanhado de sua esposa, está lendo o jornal e dá com as notícias do cadáver de mulher encontrado num armário. Um casal de namorados está lendo o mesmo texto de jornal, e discutem sobre o crime e suas motivações. O que o leitor acompanha ao longo do capítulo? A leitura feita pelos namorados, as discussões que travam, a leitura do jornal feita por Maigret (aparecem também pingos de leituras feitos pela senhora Maigret), a leitura que Maigret faz da leitura dos namorados e de suas interpretações. Com elementos simples Simenon tece uma notável complexidade: aula narrativa, eis o que é. Depois de um trecho, a jovem namorada exulta diante do parceiro: “—Eu não disse?/ —O quê?/ —É uma história de amor./ —Me deixa ler o resto.” Mais adiante, Maigret/Simenon pondera: “A curiosidade da mocinha da mesa ao lado não seria porque, apaixonada pela primeira vez, ela queria conhecer os limites do amor?”. Ou seja: para quem ama, tudo é uma história de amor; o narrador pode tratar de políticos, pode esmerar-se em descrições sexuais, pode tergiversar filosoficamente sobre filmes e livros, mas que resta no fim? Sempre uma história de amor. Maigret está de fora, de folga, observa tudo sem agir sobre o fato policial, e lá pelas tantas nota que isto, além de o remeter à infância (quando não fazia nada senão estar na escola), o joga para o futuro, para a aposentadoria. “Esse pensamento o entristeceu. Ele aceitava por alguns dias, por três semanas no máximo, brincar de andarilho, fazer parte do grande público./ Mas e quando se tratasse de representar aquele papel pelo resto de seus dias?” Mas, no ato, ele aperta o braço de sua mulher, se emociona e ela o compreende: uma história de amor.
Outro dado fundamental mas quase secreto em seus fundamentos é que o crime que obsessiona Maigret em férias em Maigret se diverte se passa no Boulevard Hausmann, justamente o bairro parisiense onde chegou a residir Proust. “Maigret conhecia o bairro, que talvez tenha sido o que mais o impressionou quando chegou a Paris, por seus prédios calmos e elegantes, seus portões que deixavam entrever antigas estrebarias no fundo dos pátios, a sombra suave das castanheiras e as limusines que estacionavam ao longo das calçadas.” Paris deveria agradecer a mais um grande escritor, Simenon, que soube usá-la como cenário duma narrativa: um passeio com leveza agora, em linguagem e assuntos, sem os dramas de Balzac ou os derramados leitos verbais de Proust.
(Email: eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br