O Mestre do Grande Plano Plstico
Tudo conspira contra Doutor Jivago. Mas o filme sobrevive ainda.
Os filmes costumam sobreviver bem mais que os textos de seus críticos. Doutor Jivago (Doctor Zhivago; 1965), uma superprodução que o cineasta inglês David Lean extraiu do romance do russo Boris Pasternak, pode ser considerado um destes filmes. Em seu tempo, graças à habilidade de Lean em manipular as emoções da plateia de então e ao perfeito casamento romântico entre o bigode do ator egípcio Omar Sharif e os olhos delirantemente azuis da intérprete inglesa Julie Christie, a produção caiu nas graças dos espectadores. São os papéis das vidas de Omar e Julie. E provavelmente o maior sucesso financeiro de Lean. Mas foi bombardeado pela crítica, que o considerou, como à própria narrativa de Pasternak, um melodrama que atrapalha as posições bélico-políticas, uma forma de mascarar o tempo histórico pelo uso de emoções fáceis.
Que o tempo diz, numa revisão no fim da segunda década do século XXI? Os defeitos estão ali: as questões do fim do czarismo e da ascensão do comunismo ao poder, dois regimes despóticos que se digladiavam na Rússia do princípio do século XX, são dispostas de maneira difusa, sem clareza e que funcionam mais como decoração que como visão crítica; Lean facilmente simplifica a interioridade de suas personagens, como é comum nas produções para a grande indústria. Mas se pergunta: estes defeitos, visibilíssimos, impedem Doutor Jivago de atingir emocionalmente o público de hoje, ainda que um público crítico? Absolutamente. Lean, como se sabe de obras-primas como Lawrence da Arábia (1962) e Passagem para a Índia (1984), é um mestre do grande plano plástico: em Doutor Jivago sua obsessão por uma certa hipnose da encenação plástica chega a momentos luminosos, afogando os objetos de cena (personagens) nos cenários dolorosamente nevados ou em espaços abertos que em alguns momentos são iluminados por um sol no ocaso. É muito nisto que Doutor Jivago faz esquecer seus problemas de construção e pode apaixonar. Sem tornar-se, é claro, uma obra-prima. Somente um belo filme que, mais uma vez, Lean nos convida a devorar com os olhos. Ainda que disfarçado de artesão da indústria, Lean tem o rigor da construção cinematográfica.
Lean ficou quatorze anos sem filmar. Fez A filha de Ryan em 1970 e depois só tornou a dirigir um filme ao adaptar uma obra do escritor inglês E.M. Forster em Passagem para a Índia, em 1984. Talvez o cansaço da idade, talvez não encontrasse quem financiasse suas produções megalomaníacas. Mais provavelmente porque, depois dos anos 60, como aconteceu a muitos grandes diretores, seu estilo de filmar se fez anacrônico no gosto do público. É curiosa a ressurreição agora, numa visão século XXI, deste anacronismo, que é sedutor a despeito.
Carlo Ponti é o produtor. Sabe-se que o italiano Ponti tinha uma afeição pelas produções grandes. Então o casamento estético de Lean e Ponti é perfeito. Maurice Jarre faz a partitura, a partir de acordes de balalaica. Pauline Kael considerou estes acordes repetitivos. O que são de fato. Mas isto não estorva que se tenham tornado umas notas musicais clássicas do ouvido cinematográfico.
Tudo conspira contra Doutor Jivago. Mas o filme sobrevive ainda.
(Eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br