A Questao Social e a Questao Literaria

Torto arado (2018), o premiado romance do escritor baiano Itamar Vieira Junior, tem suas facilidades narrativas

08/09/2021 19:53 Por Eron Duarte Fagundes
A Questao Social e a Questao Literaria

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Torto arado (2018), o premiado romance do escritor baiano Itamar Vieira Júnior, nasce da retomada da estética de realismo social erigida por alguns ficcionistas brasileiros, especialmente nordestinos, na década de 30 do século XX. Itamar atualiza a construção literária da realidade interiorana outrora buscada por outro baiano, Jorge Amado; embora o universo de aproximação por palavras às criaturas de ficção tenha mais afinidades com os aspectos de sensibilidade da escrita do paraibano José Lins do Rego.

Não há muitas novidades nem um particular inventário ficcional nas formas de abordagem narrativa de Torto arado. A edificação do romance se prende bastante às fórmulas do neorrealismo, uma orientação estética basicamente da primeira metade do século XX onde muitas vezes se simulava uma documentação da vida, quase um registro, um estudo sob um andar de crônica. O jeito dos velhos romances brasileiros (muitos deles em várias situações envelhecidos) de há quase cem anos estão ali, sem grandes alterações de vírgula ou profundas transformações, as atualizações são mais na superfície de como contar uma história; e há relatos (“muitas vezes o vi tentar convencer algum vizinho que não queria que o filho fosse à escola”) que parecem provir de certos filmes italianos ligados a esta visão estético-social, lembro especialmente dois marcos do cinema, Pai patrão (1977), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, e A árvore dos tamancos (1978), de Ermano Olmi, considerados exemplares do neorrealismo tardio na Itália, duas histórias (ao que se diz, inspiradas a primeira na vida do escritor que escreveu o livro-suporte do filme dos Taviani, Gavino Ledda, a segunda numa evocação de infância do próprio Olmi, um indivíduo de origem camponesa da região de Bergamo que chegou aos meios de produção para rodar um filme) que começam justamente com a necessidade da escola para os filhos dos pobres, dos homens da terra.

Torto arado põe em cena esta bandeira. A das pessoas ligadas à terra; no caso do romance brasileiro, acrescendo-se que os trabalhadores da terra são negros, descendentes de escravos, que reproduzem nas relações com as elites de fazendeiros nordestinos o sistema escravocrata de seus avós. Duas figuras centrais, tomando cada uma a seu tempo a voz narrativa em primeira pessoa, as mulheres e irmãs Bibiana e Belonísia, são o símbolo desta luta social. A questão social em Torto arado é seu próprio nervo estético. (O cineasta Woody Allen, artista conhecido pelo  esteticismo de suas narrativas, num de seus filmes cerebrais, creio que em Manhattan, 1979, põe a personagem que ele próprio interpreta a questionar a visão de um filme neorrealista, o italiano Ladrões de bicicletas, 1948, de Vittorio De Sica, como um filme social, propõe a um interlocutor que insiste na visão do filme como narrativa social, que se esqueça a questão social ali inserida e se veja essencialmente a beleza estética do filme. É possível?). Transpondo-se esta discussão clássica de Allen para um debate em torno de Torto arado, é de se perguntar se, retirando do espaço estético o elemento social, que sobraria naquilo que Itamar articula seu esforço como literatura? No modelo de romance da década de 30 do século passado, fonte básica das informações literárias do romance de Itamar, havia Graciliano Ramos; ele escreveu dois livros que aparentemente se inscreviam no modelo social, São Bernardo (1934) e Vidas secas (1938); mas quando se pensa nestas obras para além do modelo social, há um confronto talvez covarde, não somente para o texto de Itamar, mas para todos os romances de fins sociais daquela antiga década. Talvez se possa compreender a rabugice estética de Allen por aí.

Torto arado tem suas facilidades narrativas. O narrador insere alguns recheios para camuflar, um destes usos é a confluência de vozes narrativas, poderíamos pensar no romancista português António Lobo Antunes, mas estamos aí bem longe do que que fez o lusitano. Claro: os leitores embarcamos facilmente. Também nosso aparato crítico se rende num primeiro momento. Depois, começa-se a ver a falta de complexidade no uso de certos truques. É uma tarefa desairosa desmontar estruturas que já se impregnaram em certo público e em certos analistas. Vários prêmios igualmente credenciam Torto arado, cuja carreira internacional precedeu seu sucesso no Brasil. O futuro dirá da real posição deste romance na literatura brasileira, conceito que hoje parece encoberto pela neblina em que ver seus acertos ou seus limites parece bastante ambíguo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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