Os Americanos Chegaram
Chegaram os americanos, em muitos de seus trechos, emula a estrutura dum roteiro de filme
Consta que o cineasta norte-americano Orson Welles passou alguns dias pelo Rio Grande do Sul a caminho de Buenos Aires, onde trataria de alguns detalhes da produção que estava rodando no Brasil. É a parte gaúcha (breve e pouco referida) da aventura cinematográfica brasileira de Welles, onde produziu filmagens que não vieram a gerar filme algum.
O ficcionista gaúcho Paulo Ribeiro faz um relato (uma ficção-reportagem, mais próximo do ano da peste do inglês Daniel Defoe que do sangue-frio dos criminosos do americano Truman Capote) deste episódio wellesiano. O resultado é a novela Chegaram os americanos (2011). Ribeiro constrói sua evocação wellesiana com frases bastante curtas postas de maneira muito solitárias na página em parágrafos também breves, amiúde só com uma frase: como se fala em cinema na narrativa, pode-se dizer que estas orações são como planos de curta duração que se contrapõem de maneira livre e descontínua na montagem literária; está mais para o tipo de montagem de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard (fragmentos, estilhaços), que o que se vê em Cidadão Kane (1941), de Welles (barroco, altissonante, com as notícias em marcha — as notícias em Chegaram os americanos não marcham, se põem).
Na cena de Paulo Ribeiro as personagens históricas: Welles, seu diretor de fotografia Gregg Toland (alguns observam, à margem deste pequeno livro gaúcho agora, que o fotógrafo e suas invenções são mais importantes que o roteirista Herman Mankiewicz valorizado tanto por Pauline Kael, pois se trata duma arte visual, o cinema; em Chegaram os americanos chega-se a aludir às criações de Toland, de que para alguns Welles se teria apropriado como coisas suas, a profundidade de campo por exemplo).
Uma coisa é certa. “Que o Orson Welles passou por Porto Alegre indo para Buenos Aires em metade de 1942.” Chegaram os americanos, em muitos de seus trechos, emula a estrutura dum roteiro de filme: as frases pipocam, soltas, como anotações para planos cinematográficos. “Podia-se ver: notícia sensacional.” No parágrafo abaixo: “E que o Jacaré também morreu por Hollywood. Tinha virado a jangada pro Orson Welles filmar.” E no parágrafo abaixo: “E que depois virou herói, um Brasil inteiro de lágrimas e que as nossas lágrimas bem derramadas o Orson Welles nunca esqueceu.” E no parágrafo abaixo: “Se molhava também nas mágoas dele.” A separação por parágrafos, em Chegaram os americanos, é como os cortes num filme: rompem, fazem circular, no ritmo, a brevidade dos planos —mais Godard que Welles, imagine-se Godard filmando Welles, é Paulo Ribeiro.
Paulo, em sua literatura anterior, tentou o experimental em Glaucha (1989), relatos mais amorfos como Iberê (1996) e Missa para Kardec (2002) e em Vitrola dos ausentes (1993) construiu seu livro onde melhor se casavam seu desejo de invenção e uma narrativa. Em Chegaram os americanos ele se aproxima também deste casamento inventar-narrar: uma boa história é uma história contada com invenção? onde o formal abandona o temático? onde o tema se converte em forma? A última frase refere a morte do fotógrafo Gregg Toland, sete anos depois do lançamento de Kane, Toland tinha 44 anos ao morrer: isto pode ser uma pista de que Toland era a força fílmica de Welles e, em a sendo, se torna a personagem —oculta, evasiva— de Chegaram os americanos. A despeito de Kael e de um filme como Mank (2020), de David Fincher.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br