O Mais Viscontiano dos Filmes Americanos (Ou uma Falsa Afirmacao)

As vezes incomodamente lento, mas sempre sedutor, Julia mereceria ser redescoberto por cinefilos de v?rias latitudes

21/01/2021 14:02 Por Eron Duarte Fagundes
O Mais Viscontiano dos Filmes Americanos (Ou uma Falsa Afirmacao)

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Passou despercebido na época. Júlia (Julia; 1977), provavelmente o mais agudamente belo filme do norte-americano Fred Zinnemann, é o mais viscontiano dos filmes americanos. É bem verdade que o barroquismo engenhoso das imagens criadas pelo italiano Luchino Visconti passam à distância daquilo que Zinnemann pôs em seu filme. É tão pouco viscontiano em sua forma fílmica e tão pouco viscontiano na aproximação a um assunto: é refinado mas está longe da nobreza do conde. Mas onde se pode evocar Visconti: é nos ecos de vozes e luzes, uma memória vai-e-vem de imagens e sons ressoantes como em Morte em Veneza (1971): e também no teor da fotografia e dos figurinos para uma reconstituição de época crítica, que, como em Visconti, permite conciliar a construção de personagens com profundas caracterizações sociais. Júlia é o mais viscontiano dos filmes americanos jamais feitos, embora  esta comparação possa diminuí-lo; todavia rever Júlia se impõe para mergulhar num tipo de cinema perdido, esquecido, de que uma obra-prima como Amargo regresso (1978), do americano Hal Ashby, é outro exemplar bem-vindo.

Mais contemplativo e distanciado que o filme de Ashby, hesitante como uma figura quase teórica, Júlia todavia respira vida especialmente pela criatividade soberba da atriz Jane Fonda no papel da protagonista, a dramaturga Lillian Hellman, e também pelas aparições de sua parceira de cena, a grande Vanessa Redgrave; acresce que Meryl Streep surge num papel secundário estreando no cinema e já revela os dotes que logo a jogariam no panteão das divas; e mais a sobriedade de Jason Robards interpretando o escritor americano de romances policiais Dashiel Hammet, que viveu um concubinato de trinta anos com Lilian. Baseado livremente num dos episódios dos autos de memórias de Lilian, Pentimento (1973), Júlia estrutura as lembranças de Júlia em dois pólos, suas relações com a amiga de infância Júlia (que ela visitou em Berlim a caminho de Moscou na época da ascensão do nazismo, pouco antes da guerra) e com seu amante, o romancista Hammet, com quem viveu um caso-tipo entre o escritor consagrado e a escritorazinha obscura. O roteiro de Alvin Sargent aproveita com propriedade as anotações de Lilian e estabelece um fluxo temporal cinematográfico que a direção de Zinnemann explora com agudeza. Júlia começa meio bucolicamente sobre as imagens de um barco com uma pessoa, entrevisto por uma câmara posicionada atrás de uns arbustos; sobre esta imagem  fugidia e docemente baça, uma voz-over diz o texto que antecede as narrativas de Pentimento, este texto fala dum fenômeno pictórico que transforma uma imagem em outra à medida que o pintor traça suas linhas ou que o tempo passa tornando a velha tinta transparente para restaurar uma imagem original, a que antecedeu a mudança de rumo de pintor, uma imagem antes do “pentimento” (arrependimento). Assim, de cara, o filme de Zinnemann se instala numa relação entre memória e pintura.

Às vezes incomodamente lento, mas sempre sedutor, Júlia mereceria ser redescoberto por cinéfilos de várias latitudes para se ter uma ideia do belo cinema americano de uma determinada época.

A cena abaixo, constante do texto de Lilian, está exemplarmente feita cinema pelo roteiro de Sargent e pelas sinuosidades de gestos e olhares de Jane no filme de Zinnemann.

“Já estava transpondo a porta, quando a moça magra disse.

—Vai precisar do casaco e do chapéu. Está ventando.

—Obrigada, mas não estou com frio.

A voz dela mudou bruscamente:

—Vai precisar do seu casaco. E o chapéu fica bem em sua cabeça.

Não fiz perguntas porque o tom em que ela falara era a resposta.”

No filme há uma estranheza de ações quase kafkiana neste alinhamento de gestos e palavras. Um Kafka com um sentido mais evidentemente político

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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