O Império dos Sentidos
O Império dos Sentidos desmistifica os filmes pseudo-eróticos.
Uma advertência se impõe aos que não conhecem a produção franco-japonesa O Império dos Sentidos (Ai no corrida), de 1976, e podem vê-la em DVD: o propósito do cineasta Nagisa Oshima - reverenciado por obras de enfoque político e social - foi criar um filme claramente pornográfico. A ideia partiu do produtor francês Anatole Dauman: um filme que não se apresentasse sob o manto da arte erótica, e que levasse a extremos (até dramáticos) a busca do prazer sexual. Ao conceber o roteiro, Oshima tomou como ponto de partida a história real de Sada Abe, presa de posse dos órgãos sexuais de um homem. O filme não exibe seu destino. Na realidade Sada foi condenada por homicídio..
No Japão, que tinha severa legislação contra pornografia, a produção seria inviável. Oshima filmou sigilosamente em seu país, mas todos os procedimentos de edição e finalização foram realizados na França. Apesar das cautelas, o cineasta enfrentou um processo judicial durante quatro anos, até ser absolvido pela Suprema Corte de Tóquio. O filme esteve proibido no Brasil, Alemanha, Reino Unido e inúmeros outros países. Nos Estados Unidos, embora programado para um festival, foi apreendido na Alfândega.
O caso de Sada Abe data de 1936, antes da ofensiva do Japão contra a China - o que começou a incendiar a Ásia cinco anos antes do ataque à base de Pearl Harbor, que pegou de surpresa a população dos Estados Unidos. Em O Império dos Sentidos vemos (de passagem) bandeiras e soldados, sem qualquer referência a ações bélicas. Mas Oshima viu na história de Sada um contraponto entre relações sexuais que chegam ao sadismo e a bestialidade das guerras.
Condenou-se o filme por ser violento, mas sua violência flui do transbordamento da sexualidade. Há violência entre os dois parceiros ocasionais. Mas não há agressões por hostilidade, e sim transbordamentos no plano inclinado da busca de prazer sexual. Sada e Kichizo, parceiros sem vínculos e compromissos, se comportam como amantes em mútua submissão. Mas Oshima assume uma postura política: pela primeira vez no Cinema não-marginal uma mulher aparece no comando de uma relação estritamente sexual.
Entre a evidência do literal (a avaliação dos comportamentos na tela) e a possibilidade de uma interpretação dramática mais recôndita - de mistério - os observadores trabalhados pelas convenções da indústria cultural fatalmente optam pela primeira. Por esta, O Império dos Sentidos seria uma espécie de long playing de "apelação" pornográfica, sem muitas variações entre a primeira e a última faixas. Mas há outras opções para critério de julgamento. A mais lógica é o exame dos trabalhos anteriores de Oshima. Em seus filmes, como O Túmulo do Sol e O Garoto Toshio, há evidente revolta contra a violência da sociedade contra o individuo. Por que preferir encarar O Império dos Sentidos como algo sórdido, quando a intensidade da atração entre o homem e a mulher leva seu comportamento a uma espécie de "levitação" e de superação do instinto de sobrevivência?
Estou falando de um filme que assume certa grandeza de tragédia. E o mistério da tragédia, em exemplares extremos, se aproxima do mistério místico. A posse/holocausto do homem pela mulher, e a conservação de seus órgãos genitais por esta - parceira ocasional - possuem algo da crença primitiva nas virtudes do canibalismo. O sexo seccionado de Kichizo seria para Sada a exteriorização de um sensação inalienável: a de que ele permanece dentro de seu corpo. O risco de perda desta satisfação carnal deixa de existir quando o parceiro morre em pleno êxtase.
Oshima, sem professar uma religião, chega em O Império dos Sentidos a um fervor quase religioso na defesa de uma ética. Esse filme atinge terrível violência. Mas em comparação com as violências que os amantes deixaram lá fora é um ato de superação. A mídia audiovisual reflete e multiplica - com seu impacto técnico e com uma capacidade de reprodução realista nunca antes alcançada na História - a violência que assola as sociedades. Em vez de cogitar do retorno da Censura oficial ante a agressividade de produções em trânsito no mercado, impõe-se analisar as causas da apatia ética que favorece seu consumo em grande escala.
O Império dos Sentidos desmistifica os filmes pseudo-eróticos. Assumindo plenamente a sexualidade, expõe a sordidez de quase tudo que circula disfarçadamente sob rótulos como "hard-core", 'soft-core", "adult film" e similares.
Sobre o Colunista:
Ely Azeredo
Ely Azeredo é jornalista, crítico e professor de cinema. Escreve no caderno "RioShow" (O Globo) e no blog de cultura cinematográfica cujo acesso é: elyazeredo.com. Livros publicados: "Infinito Cinema", "Olhar Crítico: 50 Anos de Cinema Brasileiro" e "Jorge Ileli - O Suspense de Viver". Participou de edições sobre Hitchcock, Bergman e outros cineastas. Integrou o júri do Festival de Berlim. Criou o primeiro Cinema de Arte (RJ) e a revista "Filme Cultura".