Foucault: O Cineasta Antes dos Cineastas

Assim como está na posteridade, parece que Pierre Rivière existiu para a pena magistral de Michel Foucault.

28/08/2014 11:33 Por Eron Fagundes
Foucault: O Cineasta Antes dos Cineastas

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Num primeiro momento, Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio do século XIX, apresentado por Michel Foucault (1973) parece uma coletânea de documentos de época. O centro, é claro, é o memorial escrito, a pedido dos julgadores, por Pierre Rivière para relatar seu inusitado e terrível crime. Mas o primeiro documento do livro é o relatório dum juiz de paz que recebeu em primeira mão a notícia do crime e depois há outras fontes, como análises médicas e jurídicas que buscam entender o que levou Pierre a gestos considerados antinaturais, alastrando-se pela questão da loucura ou dos instantes de lucidez desta loucura ou ainda da forma lógica como esta loucura (o memorial) se articula para explicar-se aos não-loucos. Assim, o próprio texto explicativo de Foucault é somente um de seus elementos, um elemento da construção do livro. Pouco a pouco passamos a entender o livro de Michel Foucault, um dos mais notáveis pensadores da França no século XX, como uma organização que ultrapassa o sentido de coletânea visto em sua superfície; neste aspecto, Foucault, homem do século XX, utiliza o conceito de montagem do cinema: as partes se interligam formando um todo que vai além daquilo que eles querem dizer individualmente. Embora o autor entregue a narrativa a vozes diversas das dele (o criminoso, juízes, médicos, assim como o ficcionista colombiano Gabriel García Márquez entregava, como truque ficcional dentro duma reportagem, ao diretor de cinema chileno Miguel Littín em A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile, 1986, todo o processo de narrar duma história que no fundo era do próprio García Márquez), o texto, mesmo que materialmente pertença a outros, apresenta formações que condizem com a própria obra de Foucault, preocupado com a mente, com as prisões, com as disfunções sociais. Assim como está na posteridade, parece que Pierre Rivière existiu para a pena magistral de Michel Foucault.

Pierre justifica seu ato antissocial porque precisava livrar seu pai “des peines et des afflictions que mon père a soufflertes de la parte de ma mère depuis 1813 jusq’à 1835.” O parricídio de Pierre é contra a mãe: esta mulher era o mal do pai de Pierre. A misoginia extremada, pois. A lógica inquebrantável dos absurdos mentais de Pierre: matara sua irmã porque esta se aliara com sua mãe para o mal do pai e a seu pequeno irmão porque permitiria que o pai passasse a odiar a Pierre, não sofrendo tanto com o que viria, as prisões ou o enforcamento do filho criminoso. Foucault elabora, com os documentos de que dispõe, a questão genética da loucura e examina os lances luminosos que chegam aqui e ali a clarear as trevas da demência.

“A l’instant, informé par M. le maire de la commune d’Aunay, qu’un meurtre épouvantable vient d’être commis en ladite commune d’Aunay, village dit la Faucterie, au domicile du sieur Pierre-Margrin Rivière, propriétaire cultivateur, absent de chez lui, nous dit-on, depuis le matin.” É como começa o relatório do juiz de paz, o cerimonial policial-jurídico que tenta pôr alguma ordem numa casa suja e desarrumada. A polícia e a jurisprudência, elementos da superestrutura social, parecem, aos olhos de Foucault, incapazes de atender às complexidades duma infraestrutura, como uma mente perdida nas relações sociais. Talvez somente uma literatura filosófica, ali entre o pensamento e a poesia, como esta praticada por Foucault, possa aproximar-se razoavelmente da demência.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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