As Voltas com Machado de Assis: Julio Bressane

O encontro do cinema de Bressane com a ficcao de Machado de Assis nao come?ou em Bras Cubas

12/08/2023 02:07 Por Eron Duarte Fagundes
As Voltas com Machado de Assis: Julio Bressane

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Júlio Bressane faz sua leitura em Capitu e o capítulo (2021). Lê Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis, pelas lentes do cinema: o cinema que Bressane tem feito ao longo das décadas, com liberdade formal e elaboradas referências intelectuais. Assim, o cineasta que o poeta Haroldo de Campos considerava o maior entre os diretores de cinema brasileiros se debruça sobre um romance estimado do habitualmente dado como nosso maior escritor. E a ideia de fazer algo em torno do livro de Machado é antiga na cabeça de Bressane, vem de meados da década de 80, quando o poeta Haroldo lhe assoprou uma frase: “O importante no Dom Casmurro não é a Capitu, é o capítulo.” Na época Bressane estava fazendo Brás Cubas (1986), talvez a obra mais comentada de seu cinema em torno de uma obra de Machado de Assis, e esta sugestão (talvez) de Haroldo veio no espírito de Bressane tempos afora. Finalmente agora, aos setenta e sete anos, com um notável vigor cinematográfico (seu anterior Sedução da carne é uma obra-prima), Bressane materializa seu Casmurro. A aliteração (coisa própria de poetas como Haroldo) é o ponto de partida de seu projeto, o título do filme: falamos em Capitu, então Capitu e o capítulo, Capitu em capítulos, o ritmo sincopado de Machado feito de cenas em separado que se vão juntando é captado por Bressane e com a facilidade que tem para encenar sequências fixas que se desgarram umas das outras e no entanto vão ter a uma curiosa unidade. Na aliteração, sabemos, as sílabas se reiteram: capitu são as três primeiras sílabas de capítulo. Mas não é somente uma brincadeira formal simbolista: há uma ideia, e uma desmistificação, por trás disto.

O encontro do cinema de Bressane com a ficção de Machado de Assis não começou em Brás Cubas. E talvez não se conclua com Capitu e o capítulo. Em Cara a Cara (1967) a personagem lê um trecho do conto Pílades e Orestes, de Relíquias de casa velha (1906), indicando na sequência uma pista para a própria trama do filme. De maneira muito livre e até vaga, Bressane, em A erva do rato (2008), se vale de dois contos de Machado de Assis, A causa secreta (este filmado anteriormente por Sergio Bianchi, e com cujo filme o de Bressane dialoga) e O esqueleto. Sermões, a história de Antônio Vieira (1989), feito logo depois de Brás Cubas, apesar de referir-se a outro assunto, parece ligar-se estilisticamente com uma reflexão machadiana por Bressane.

Leitor, a literatura é uma espécie de personagem no cinema de Bressane: é um de seus aparatos estéticos mais fortes. Há outros, porém. A pintura na construção de quadros, a música não somente na utilização de sons mas ainda na edificação de um ritmo narrativo, a proposição teatral do ator e do texto (rigor é que ocorre), tudo escorre pelo cinema de Bressane. Literatura, pintura, música, teatro não são, no cinema de Bressane, peças materiais da linguagem cinematográfica; são na verdade signos internos que revolucionam e criam um novo ser estético, o cinema brasileiro de Júlio Bressane.

O cinema brasileiro de Bressane, ainda que elaborado com uma complexidade universal, é profundamente nacional. Sabe-se desde Matou a família e foi ao cinema (1969): nosso erotismo, nosso melodrama. Sua Cleópatra (2007) é brasileira; Alessandra Negrini. Capitu e o capítulo conclui sua história, descem os créditos finais e, antes que estes créditos se concluam, uma interrupção: o filme sai de sua história casmurra, se desloca para o set de filmagem, onde vemos as ações de Bressane, seus atores, sua equipe. Esta sequência do set começa com um plano no espelho em que os cenários e as pessoas estão de cabeça para baixo. Depois os planos se ajeitam, as pessoas ficam em posição normal na imagem. No fim da sequência, uma música de carnaval, da escola de samba Mangueira: o mais puro brasileirismo, samba, o dionisíaco carnavalesco: somos nós, mesmo os intelectuais somos tropicais. Penso no romancista José Geraldo Vieira e em seu romance Terreno baldio (1961): “Não me rendo à tentação  fugaz de enfileirar hipóteses sobre o que me aguardará como quinhão de perplexidades nesse ano que já se anuncia em sambas nas favelas da Lagoa.” O samba: tão iconoclasta num escritor como José Geraldo quanto num cineasta que acaba de rodar as sisudas perplexidades de Capitu e Bentinho vividas especialmente por um trio de intérpretes inesperados como Mariana Ximenes (terá ela mesmo os olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada?), Vladimir Brichta (será mesmo ciumento ou traído?) e Enrique Diaz (é o narrador, o casmurro, o pós-Bentinho). Enrique é o que sobressai por sua interpretação. É com a personagem de Enrique que encorpa uma leitura do romance de Machado de Assis: há o narrador Bentinho, que substitui ou se mimetiza com a personagem Bentinho, e há a personagem Bentinho, obcecada com as falsidades de sua amada Capitu, desde a infância até a morte, ambos se  afastam, se permutam, se confundem, é bom reler Dom Casmurro à luz de Capitu e o capítulo. É pelo talento diccional e gestual de Enrique que Bressane  inclui em seu filme um achado pós-machadiano, buscando os sarcófagos (os poemas) de um poeta romântico hoje só visto em livros didáticos, o baiano Junqueira Freire (1832-1955); no trecho o texto detém-se em evocar a morte dos poetas brasileiros que morreram jovens no século XIX, sublinhando Junqueira. É um brinde de Bressane a Machado, ao tempo de Machado, aos contemporâneos de Machado.

Filmado muitas vezes em sombras e com alguns filtros de câmara que tornam quase invisíveis os cenários e os indivíduos diante da objetiva, Capitu e o capítulo se acrescenta como mais um belo enigma de cinema proposto por Júlio Bressane. Enigma não como algo inteiramente hermético, porém como uma explosão sensorial da imagem. O que se simboliza bem na cena de interrupção de créditos, em que um samba irrompe tempestuosamente na faixa sonora para desmanchar a serenidade clássica que Bressane, sempre um experimentador em colapso, atingiu com  este seu filme.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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