O Cinema de Claudio Assis: Duro e Implacavel
Em Piedade (2019), seu novo filme, Assis reafirma o que se sabia dele em obras como Amarelo manga (2002) e Baixio das bestas (2006)
Cláudio Assis, realizador pernambucano, faz um cinema explosivo; mas são explosões duras, implacáveis, que em momento algum oferecem as facilidades de degustar o espetáculo, suas encenações se aproximam do indigesto, por seu naturalismo exacerbado, para os espectadores mais sensíveis ou contrafeitos às vulgaridades da vida. Em Piedade (2019), seu novo filme, Assis reafirma o que se sabia dele em obras como Amarelo manga (2002) e Baixio das bestas (2006): mostra a crueza das relações humanas no país que começa o século XXI com um primitivismo intelectual que incomoda artistas como Assis. Mas Piedade pode ser posto um pouco além nas características premonitórias ou concomitantes de seu pequeno mundo do vilarejo litorâneo de Piedade (um local fictício): o novo filme se acopla na realidade da nação em que vivemos nestes anos, precária, ignorante, incapaz de agir, incapaz de pensar. Um outro filme brasileiro recente me deu esta sensação de espiar os subterrâneos laterais de nossa alma: Divino amor (2019), do também pernambucano Gabriel Mascaro. Se Mascaro ia atrás das máscaras do fanatismo religioso onde este encontrava o sexo, Assis atravessa os liames familiares feito de ações sexuais cinicamente ocultadas. Tanto num quanto noutro filme: um país incômodo.
Piedade vale-se de intérpretes de renome. Nossa matriarca da interpretação, Fernanda Montenegro, reitera o vigor e a renovação de sua arte. Irandhir Santos é um achado vulcânico do Nordeste. Matheus Nachtergaele, com sua composição bruta e única, ao fazer seu tipo vorazmente determinante, é uma face constante da filmografia de Assis; uma espécie de alter ego do cineasta, talvez. E mesmo atores não tão conhecidos do grande público, como os jovens Mariana Ruggiero e Gabriel Leone, têm seus instantes de brilho.
Piedade fala de conflitos familiares, dois irmãos (um homem e uma mulher) encontram o terceiro irmão, que estava extraviado da família há décadas. Irandhir, Mariana e Cauã dão vida a estes irmãos: é pura intensidade. Cauã leva aos limites suas possibilidades interpretativas ao contracenar corpo a corpo, sexo a sexo com Matheus; o registro de Cauã à margem do galã televisivo (bonitinho e frívolo) remete à criatividade dramática e de composição física que o ator já exibira antes em filmes como Falsa loura (2007), de Carlos Reichenbach, e Se nada mais der certo (2008), de José Eduardo Belmonte, mostrando o quanto diretores inventivos e de pulso como Reichenbach, Belmonte e agora Assis podem contribuir para a excelência dum intérprete como Cauã.
Piedade é especialmente feliz em desnudar a atual vigarice brasileira. Na personagem de Nachtergaele, o funcionário torpe duma indústria petrolífera que quer modificar a natureza da cidadezinha, Assis e seu ator põem muito deste cinismo e desta hipocrisia: numa cena, a personagem de Nachtergaele fala por vídeo com sua mãe e a personagem de Cauã deixa-se ver nua, provocando a escandalização da senhora, e a criatura de Nachtergaele se exalta, se enfurece com a de Cauã. Para o ator que a interpreta, esta figura sinistra é o que ele chamou “um protobolsonarista”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br