Wajda e o Problema da Modernidade

O Homem de Mármore, do polonês Andrzej Wajda, é um dos pilares dos anos 70

05/05/2015 10:37 Por Eron Duarte Fagundes
Wajda e o Problema da Modernidade

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Se o cinema tem alguns pilares em algumas décadas, pode-se dizer que O homem de mármore (Czlowiciek z marmuru; 1976), do polonês Andrzej Wajda, é um dos pilares dos anos 70. Ele ilumina todo o decênio (um holofote) e sustenta profeticamente o que viria no final deste mesmo decênio. É verdade que Cinzas e diamantes (1958) teve sua fama histórica, mas foi a partir de O homem de mármore que a redescoberta do cinema esteticamente engajado de Wajda passou a apaixonar as discussões dos cinéfilos; o filme anterior de Wajda, o suntuoso e opulento A terra prometida (1975), só foi descoberto internacionalmente após a aparição de O homem de mármore; segundo o próprio Wajda dizia na época, A terra prometida seria sua última obra de estrutura clássica; assim, O homem de mármore, formalmente mais contido que A terra prometida, é o primeiro passo de Wajda numa certa modernidade de filmar que despencaria depois na volúpia histórica de Danton, o processo da revolução (1982).

Como escreveu o crítico gaúcho Tuio Becker em seu comentário à época do lançamento do filme em Porto Alegre, o roteiro de O homem de mármore se estrutura como um filme de detetive clássico, à maneira de Hollywood. O detetive é contratado para descobrir alguma coisa, mas seus achados enveredam por um caminho que desagrada a quem o contratou e seus serviços são desautorizados pelo contratante; mesmo assim, movido por sua curiosidade ou desejo de verdade, o detetive segue por conta própria na investigação. Em O homem de mármore a estudante de cinema Agnieszka é determinada por um produtor de televisão para rodar um filme que trate de Mateusz Birkut, um operário-padrão dos anos 50 conhecido por sua habilidade e ligeireza em sentar tijolos; figura transformada em mito e estátua de mármore pelo Partido Polonês, Birkut cai na medida para os interesses do oficialismo de Estado; mas Agnieszka dá com um período onde Birkut caiu em desgraça com o Partido, e o possível filme da estudante de cinema toma rumos desagradavelmente inesperados para os produtores; os negativos são retirados das mãos de Agnieszka, a tese universitária de sua formatura vai para a cucuia, mas ela insiste em, estimulada por seu pai, levar adiante suas descobertas da verdade. O que difere O homem de mármore da narrativa policial evocada por Tuio é a maneira como a inserção política se dá na linguagem cinematográfica, fazendo de O homem de mármore um semidocumentário graças às tintas deixadas pelo filme dentro do filme, um documentário, dirigido pela protagonista; é como se Wajda superdirigisse o filme de Agnieszka.

Na maior parte dos 160 minutos de projeção, o que o espectador vê em cena não é a trajetória difícil e às vezes frustrada da estudante de cinema, nem o documentário que ela está filmando e que é feito de peças de época e de sequências de entrevistas com pessoas que privaram com o herói polonês, embora uma (a trajetória) e outro (o documentário dentro do filme) permaneçam em todas as imagens como uma presença-ausência muito forte, uma sombra decisiva; no entanto, na maior parte do tempo, o que está na montagem é a reconstituição que o próprio Wajda faz, a partir dos gestos de Agnieszka, da vida, dos feitos e dos desfeitos de Mateusz Birkut, o proletário-modelo convertido em mármore pelo Estado-nação. De um lado, a vontade de cinema da estudante, quase como um rascunho para o diretor Wajda; de outro, a vida mesmo do operário, suas ascensões e decadências, a realidade precária bem longe da hagiografia que queriam impingir a Agnieszka. Quem é o protagonista de O homem de mármore, a estudante de cinema ou o pedreiro que é uma personagem do filme dentro do filme que no entanto sobressai no primeiro plano do filme que abarca ou outro filme-dentro?

A pertinência histórica de O homem de mármore permanece assombrosa. No fim do filme, Wajda localiza a ação nos estaleiros de Gdansk, tomando o filho de Mateusz, Tomczyk, como um dos muitos operários que começavam a agir naquela localidade industrial da Polônia em meados dos anos 70; poucos anos depois, as greves comandadas pelo sindicato Solidariedade, dirigido por Lech Walessa, explodiriam ali mesmo em Gdansk, tornando O homem de mármore uma obra de vanguarda política, profética. Na sequência que deu a este filme, em O homem de ferro (1981) Wajda buscou retratar documentalmente as ações operárias a partir da trajetória dum ente de ficção, Tomczyk.

Para o bom sucesso de O homem de mármore, contribuiu a adequação da intérprete central, Krystyna Janda, que, apesar de seu comportamento trejeitoso e duma inquietação de gestos excessiva, funciona muito bem em cena. Sobre ela Wajda anotou em seu livro O cinema chamado desejo (1986): “Foi ao longo dos testes de O homem de mármore que encontrei Krystyna Janda pela primeira vez. Chamou-me a atenção sua maneira de fumar um cigarro enquanto aguardava a câmera e a iluminação. Nunca eu vira semelhante nervosismo. Encantado, falei-lhe sobre isso, pedindo-lhe que repetisse o gesto diante da câmera. Ela o fez com precisão perfeita.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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