O Romance Poematico Segundo Mia Couto

Mulheres de cinzas (2015), desde seu titulo, desmancha-se nos jogos semioticos

04/02/2022 21:04 Por Eron Duarte Fagundes
O Romance Poematico Segundo Mia Couto

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A maioria dos romancistas persegue a poesia em sua prosa. Quer dizer, uma transcendência metafórica que nasce dos achados do verbo mas não se esgota nisto, que transforma e transtorna a poesia da sintaxe mas não esbarra nas simplificações do processo. Há vários tipos de romancistas poemáticos: no português do Brasil, as metamorfoses de Guimarães Rosa e o rigor deslumbrante de José Geraldo Vieira. O romancista moçambicano Mia Couto utiliza tudo o que a linguagem lhe oferece para buscar este diálogo poemático com o leitor.

Mulheres de cinzas (2015), desde seu título, desmancha-se nos jogos semióticos. O leitor lê rapidamente e lhe ocorre as mulheres que se vestem de cinzas. Então, talvez fosse melhor no singular: mulheres de cinza, englobando todos os cinzas que estas mulheres usam. Mas não é nada disto. São mulheres feitas de cinzas, aquele borrão que surge das brasas: depois que o fogo termina, restam as cinzas, isto é, há uma ligação metafórica entre estas cinzas e as mulheres africanas que sobreviveram às guerras colonialistas.

Em Mulheres de cinzas o autor moçambicano articula duas vozes narrativas, uma aborígene colonizada e um militar colonizador porém com tendências humanistas. De um lado, a nativa moçambicana Imani, que descreve os horrores da guerra de conquista dos portugueses na África. De outro, as cartas escritas pelo sargento lusitano Germano de Melo a um patrício, relatando os paradoxos de sua aventura africana. Do encontro entre Imani e Germano nasce uma relação que tensiona os dois mundos, o colonizado e o colonizador.

“Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime”, começa o texto da nativa. “Escreve-lhe o humilde subordinado de Vossa Excelência”, anota no início de sua primeira carta o sargento luso. “Cinzas, poeiras e fuligem: era o que ela sonhava vir a ser”, observa Imani sobre sua mãe. “Em mim galopava um rio e, aos poucos, fui-me afundando nesse turvo fundo onde todo o chão é água”, desaba o sargento no gesto final de sua última carta. “E ela diz-me: antes mesmo de nasceres, antes de veres a luz, já tu tinhas visto rios e mares”, conta no penúltimo movimento do romance a protagonista sobre seu pré-nascimento segundo sua mãe. É preciso acompanhar estes tecidos poéticos que se entrelaçam para bem desfrutar, malgrado alguns poucos percalços, este romance de Mia Couto.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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