Os Excrementos da Ditadura na Sala de Estar

Claramente ficcional em sua historia e estrutura, A Historia Oficial quer aproximar-se da realidade

03/11/2022 18:20 Por Eron Duarte Fagundes
Os Excrementos da Ditadura na Sala de Estar

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A história oficial (La historia oficial; 1985) é, ainda hoje, o filme mais citado do diretor argentino Luis Puenzo. Em Cannes a atriz Norma Leandro ganhou um prêmio. Foi uma das poucas vezes em que uma realização latino-americana recebeu o Oscar de filme estrangeiro. Seu tema era bastante perturbador: durante os governos militares totalitários na Argentina, os filhos de mães ligadas à resistência ao regime de força tiveram seus bebês (nascidos na prisão) retirados de si logo após o nascimento e dados em adoção a famílias de classe média e rica do país. Poucos anos antes, no documentário uruguaio Quando eu crescer (1979), assinado pelo Grupo Anônimo de Cinema Independente, tratava deste mesmo assunto, bebês de prisioneiras políticas criados por famílias que os adotaram sob a conivência do sistema, porém dentro duma perspectiva sul-americana, um bebê de um país muitas vezes ia parar num outro país, ou seja, acenava-se para a cooperação entre ditaduras militares cuja gênese era a mesma. Na época do lançamento do filme por aqui, o Brasil vinha das Diretas Já e vivia os passos iniciais da redemocratização; na Argentina, estourava o Julgamento dos Crimes das Juntas Militares (assunto tratado de maneira magnífica em Argentina, 1985, do cineasta chileno Santiago Mitre). Os prêmios e os caminhos políticos na América do Sul favoreciam a receptividade duma obra como A história oficial; a cinefilia entre nós se entranhava na questão, facilmente. Uma revisão hoje traz novas perspectivas temporais, e mesmo assim históricas: a ilusão com que vivemos o cotidiano que pouco a pouco é engolfado por relações autoritárias e castradoras, até que uma conscientização tardia nos assombra.

Alicia, a personagem central de A história oficial, em extraordinária composição de Norma Aleandro, é uma professora de História. Desde as primeiras sequências, suas aulas são marcadas pelo rigor, pela disciplina e por habituais relações de comando com os alunos, geralmente rebeldes como se é na juventude; ela tenta ensinar a história oficial. Mas sua vida privada tem um fato obscuro: ela tem uma pequena filha adotada, que foi trazida em bebê por seu marido (vivido por Héctor Alterio, que em Cria cuervos, 1976, do espanhol Carlos Saura, foi o militar franquista pai da pequena protagonista). Pouco a pouco, entre suas aulas navegando pela história oficial e acordando para fatos que a incomodam, ela percebe que seu marido, um empresário arrivista beneficiado pelo sistema político, pode ter obtido a adoção da filha por meios escusos, e a menina pode ser aquilo que começa a explodir nos noticiários então: filha de uma mãe da subversão política, arrancada à força para ir parar na família de classe média. O conflito conjugal de Alicia e Roberto é político nas cenas de A história oficial.

Claramente ficcional em sua história e estrutura, A história oficial quer aproximar-se da realidade. Em determinado momento Puenzo filma uma manifestação das mães e das avós da Praça de Maio, no centro de Buenos Aires. É uma inserção ficcional duma cena cuja origem é documental: em 1984, tempo da filmagem, a manifestação de fato ocorreu, e estas manifestações eram reiterativas então.

Resta ainda observar que certas confidências femininas (as conversas de Alicia com as amigas) têm o jeito (pela naturalidade dos diálogos, pela posição e movimentos da câmara, por uma sutileza qualquer da imagem) próximo daquele de Carlos Saura em Elisa, vida minha (1977; especialmente a sequência duma conversa de Elisa com sua irmã Isabel, confidências femininas. E ainda: quando ocorreu a Puenzo o projeto, os militares ainda estavam no poder, e ele pretendia filmar tudo às ocultas, em câmaras 16 mm, um underground; com a queda do ditador Leopoldo Galtieri em 1983, o projeto se alterou e a produção pôde ser mais escancarada.

A história oficial é um pouco isto: lançar um dos excrementos da ditadura militar argentina nas salas de estar da classe média, que é esta que frequenta basicamente as salas de cinema e geralmente, como diz uma personagem a certa altura, está sempre pronta a apoiar os golpes políticos de direita.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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