Contar Histrias Como um Ato Intelectual

Os contos de Decameron, de Boccaccio, tm sua grandeza aumentada pela perspectiva do conjunto

09/06/2014 10:01 Da Redação
Contar Histórias Como um Ato Intelectual

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Decameron (1354), o gigantesco painel imaginativo concebido pelo escritor italiano Giovanni Boccaccio, apresenta dez jornadas em que a cada vez dez contadores de histórias conta uma história, digamos assim, tirada de sua cachola: ao fim do livro o leitor devorou cem histórias em que o brilho de narrar de Boccaccio impressiona constantemente pelo sopro de novidade em todo trecho, mesmo quando certas situações e algumas personagens retornem aqui e ali.

Na abertura da primeira jornada, Boccaccio esmiúça o universo terrível da peste que se abateu sobre Florença em 1348; os detalhes quase jornalísticos de Boccaccio remetem ao que fez o inglês Daniel Defoe ao evocar a famosa e dizimadora peste europeia. “Era uso (tal como ainda hoje se vê) as parentes e vizinhas do morto se reunirem em casa deste para chorar com as mulheres que lhes fossem mais chegadas; por outro lado, em frente à casa do morto, os vizinhos e muitos outros cidadãos reuniam-se com seus parentes, e o clero comparecia em conformidade com a posição social do morto; e, sobre os ombros de seus pares, com pompa fúnebre, círios e cantos, este era levado à igreja escolhida por ele antes mesmo da morte.” Que ocorre então? Dez criaturas se isolam nas montanhas e entretêm-se contando-se histórias, fugindo assim ao obscuro mundo pestífero. É um passo adiante na questão do trovador medieval; é uma disputa, é uma rivalidade, mas é também um exercício intelectual pela harmonização peculiar dos elementos do contar. Para Boccaccio, quem conta histórias é a mesma criatura que ouve histórias; antes de contá-las, Boccaccio foi ouvinte e leitor de histórias, assim como cada uma das personagens de Decameron. Por Decameron leitor e autor se permutam e fundem, trocam de funções antes de qualquer coisa e a cada passo. Mui ajustadamente, Boccaccio é considerado um pontapé inicial do que é moderno: embora Decameron esteja povoado das mesmas criaturas medievais, como sultãos e sultanas e seres gregos fora de órbita, o que ali se discute é o realismo de suas vidas; as vidas maliciosas de frades e abades são um contraponto àqueles arcaísmos; e a esperteza amoral de algumas almas são expostas com cruel rigor pelo narrador (que se traveste de vários nomes mas é sempre o mesmo, manipulado por Boccaccio).

Os contos de Decameron têm sua grandeza aumentada pela perspectiva do conjunto. Boccaccio pôde ser lido depois nos fragmentos que geraram romances em Machado de Assis. E na intermediação entre livro de contos e romance que é Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Boccaccio é também uma antecipação da forma de montar partes como é o cinema; por isso o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini o filmou. Decameron, que está na sinonímia de Boccaccio, é igualmente um bom motivo para encerrar uma sexta-feira chuvosa, no fim do mundo duma remota praia catarinense, sucedendo-se a dias de sol e mulheres lúbricas como muitas vezes parecem espelhar certas histórias do autor italiano. Boccaccio é a prévia literária, que descubro tardiamente, em que se teria inspirado minha professora bentogonçalvense Volida Dalla Coletta, para, em tardes chuvosas, interromper o didatismo das aulas, contar histórias mágicas como estas de Boccaccio para encantar este leitor que com ela verdadeiramente aprendeu a amar ouvir contar histórias. E, talvez, contar suas próprias histórias.

 

(e-mail: eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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