Quem Escreve, Quem Vive
As Vidas Que Ninguem Ve nos aponta que hoje em dia a natureza da literatura se trata muito mais feminina que masculina?


Durante um bom tempo, a literatura nunca se interessou pelo povo da parte debaixo da tabela, os fracassados, os esquecidos, os miseráveis. A escola realista começou a trazer alguma coisa; o modernismo aprofundou as coisas, e as letras hoje se esforçam muitas vezes por abolir esta distância entre a nobreza da arte e a crueza da vida.
Inspirado num livro de Eliane Brum, ou talvez nas ideias mesmo de Eliane como jornalista e escritora, As vidas que ninguém vê (2024) é uma coletânea de contos, organizada por Marcelo Spalding, em que foram reunidos autores que participaram do Curso Online de Formação de Escritores, uma oficina literária que visa a formar e criar uma escrita contemporânea. Pelo exame do conjunto de narrativas, imagina o leitor que se deu aos alunos uma ideia inicial — apanhar uma pessoa comum, dessas que não chamam a atenção por nada, e desenvolver a partir dela uma história— e descobrir que literaturas sairiam dali. De um lado, com a pena na mão, para usar duma imagem para lá de anacrônica, bem ao gosto deste que aqui anota, escritores sem grande nome, a maioria mulheres (autores que ninguém lê? que se precisa ler!?); de outro, personagens obscuras, sem os grandes feitos ou os grandes amores que movem as chamadas histórias inesquecíveis. Desta mistura o que deparamos são contos de surpreendente madureza, de notável autenticidade, que em instante algum revelam a fratura duma experiência oficineira, cheia de hesitações e inconstâncias: é tudo de sensível precisão.
Ney Porto Alegre ataca com o conto “A infância”. Há uma vizinha, uma senhora, que lhe chama a atenção. As relações entre os cruzamentos com esta vizinha, na Ilha do Governador no Rio, e as evocações de infância do narrador atravessam a narrativa, com o sabor entre o cotidiano, a memória e a invenção.
Tatiana França, em “Uma raridade da natureza”, exibe a sensibilidade de linguagem para criar a velhice como memória. “Perguntei se ela morava sozinha. Era o único motivo para uma senhora doente ter de limpar a casa, deduzi. Ela morava com dois dos três netos. Tentando defendê-los, explicou que eles limpavam nas folgas, mas ela não conseguia esperar. A irmã morava ao lado e sempre a xingava por conta da mania de limpeza. Mas fazer o que fazer, tinha de limpar, justificou. Não tinha mais nenhuma ocupação, nem viajar podia mais. Quando o marido ainda era vivo eles viajavam muito, conheceram lugares lindos. Ela fora muito feliz, anunciou estampando um sorriso genuíno que somente as mais doces recordações permitem formar. Deu dó ver a expressão do rosto diluir ao ter a porta do paraíso fechada diante de si. Eram só memórias.” Haverá imagem mais bela que “a expressão do rosto diluir ao ter a porta do paraíso fechada diante de si” para dar a ideia da beleza trágica da melancolia do que já foi?
Ou poderemos pensar nestes estranhos balanços verbais de “Fantasmagorias da Bahia”, de Vera Spínola, que nos assopra: “No passeio pude experimentar a fantasmagoria reluzente do barroco e a fantasmagoria angustiante de personagens ignorados”.
Sempre, no fim, vai sobrar esta pergunta: ao reunir numa oficina muito mais mulheres que homens, As vidas que ninguém vê nos aponta que hoje em dia a natureza da literatura é muito mais feminina que masculina? Ou sempre foi, e a sociedade patriarcal camuflou? Ou os homens que escrevemos devemos desabrochar a porção feminina de nosso ser, de todo ser? Questão de antropologia literária.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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